Ismênia
Ribeiro Schneider
Daniela
Ribeiro Schneider
Cristiane
Budde
A história oral
serrana nos conta que, nos séculos XVIII e XIX, muitas desavenças e conflitos
eram resolvidos com base na violência, resultando, às vezes, inclusive, em morte.
Ouvimos falar, assim, de casos de assassinatos na Comarca de Lages, envolvendo
personagens bem conhecidos da história local e familiar. Mas será que esses
crimes tem algum tipo de registro?
Resgataremos aqui
alguns desses casos ocorridos na Serra Catarinense, buscando apresentar
evidências e registros de documentos do Museu do Judiciário Catarinense e do
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Estas foram importantes fontes para
desvendar parte de crimes ocorridos, por exemplo, na Fazenda Santa Cruz (propriedade
da conhecida Família Ribeiro), em 1850, e na Fazenda do Barreiro, em 1861, do
qual trataremos na matéria de hoje.
O Museu do
Judiciário, inaugurado em outubro de 1991, localiza-se em Florianópolis (SC), e
faz o resgate de documentos processuais antigos existentes nas Comarcas e no
Tribunal de Justiça[ii].
Fazem parte do seu acervo, além de livros, esculturas, material iconográfico,
material audiovisual, armas, móveis e utensílios ligados à História do Poder
Judiciário de Santa Catarina e documentos[iii],
como os processos-crime, que buscavam descrever o transcurso e o julgamento de
crimes ocorridos nas Comarcas Catarinenses. Também o Arquivo Público do Estado
de Santa Catarina (em Florianópolis, SC), reúne importante acervo proveniente
do Poder Executivo, do Legislativo e do Judiciário, possuindo documentos desde
o período de 1703[iv].
Os dados
encontrados nesses locais somaram-se aqui aos registros de Enedino Batista
Ribeiro, em seu livro Gavião-de-Penacho, e às lendas locais, que buscavam
explanar os motivos dos assassinatos lembrados pela população serrana. O
primeiro caso que apresentaremos, ocorreu na Fazenda do Barreiro, originária de
fazendas contíguas em terras dos hoje municípios de Painel e Urupema (SC). Ela
foi “fundada em 1782 pelo português José Joaquim Pereira”[v], e permanece com a oitava geração da
mesma família[vi]. A “criação de gado de corte e de
cavalos crioulos, a plantação de milho e feijão sempre colocaram a Fazenda do
Barreiro como destaque no setor agropecuário”[vii].
Já as atividades de hotelaria foram iniciadas em 1986v.
Fazenda do Barreiro. Fonte: http://www.fazendadobarreiro.com.br/site/index.php. |
O ASSASSINATO DE FELISBERTO
JOAQUIM DO AMARANTE (1796 – 1861)
O crime em
questão incidiu sobre a família Amarante, bastante conhecida na região serrana.
A vítima do assassinato foi FELISBERTO JOAQUIM DO AMARANTE (ou Felisberto
Bicudo do Amarante) (bat. 26/12/1796[viii]
– 03/02/1861xii), filho de Miguel Bicudo do Amarante e de
Anna Joaquina Boenavides (ou Benevides). Era casado com CARLOTA JOAQUINA DE LIZ
(ou Carlota de Liz e Abreu) (1807 - 06/10/1884[ix]), filha de Nicolau de Liz e Abreu e
de Umbelina Maria Pereira, descendentes da importante família Pereira, que
primeiro povoou a região do Painel.
Felisberto e a
esposa Carlota tiveram os filhos: Felisberto, Policarpo, Maria, Cezário,
Procópio e Cândido[x],
dos quais destacamos Cezário
Joaquim do Amarante (25/02/1852 –
10/08/1929), que foi o quarto prefeito do município
de São Joaquim (SC), governando a cidade durante 28 anos, de 1898 a 1926.
FELISBERTO foi
assassinado a tiros, no dia 03 de fevereiro de 1861, em sua casa, na Fazenda do
Barreiro. Sua esposa, presente no momento do crime, acusou como responsável
pelo assassinato ao seu cunhado, irmão do morto, VASCO JOAQUIM DO AMARANTE
(bat. 29/02/1793[xi]).
Fonte: Family Search[xii], Registro de óbito de Felisberto Amarante, 1861. |
Nota: Eram irmãos de Felisberto Amarante: Vasco Joaquim do
Amarante, Diogo José Bicudo do Amarante, Francisco Bicudo do Amarante, Antônio
Joaquim do Amarante, Joaquim José do Amarante, Maria Euphrasia e Anna Maria de
Boenavides.
Esses dados
foram acessados através do documento “Translado dos Autos do Crime de apelação
ex-ofício interposta pelo Dr. Juiz de Direito da Comarca (Lages) da decisão do
júri que absolveu o réu Vasco Bicudo do Amarante”, de 1861[xiii].
Aparece ali a inquirição do testemunho de Carlota, que assim narra, sob seu
ponto de vista, a ocorrência do crime (grafia original):
... todos escravos haviam
corrido para o mato logo que ouviram o primeiro tiro: o que sendo ouvido por
ela, não esperou mais e correu com seu filho pela porta de trás; ao chegarem à
cozinha ouviram um tiro e ao passarem a taipa junto ao Rio, ainda ouviram outro
tiro; depois que passaram o rio do outro lado encontrou-se com o restante de
seus filhos, e todos os escravos, exceto o Luiz e a Delfina. Daí seguiram todos
juntos, e ainda ouviram no caminho, um tiro, o qual foi dado em um cachorro,
que depois foi achado morto, cujo tiro ela informante julga ter sido dado pelo
seu cunhado Vasco, porque ouviu ele dizer estas palavras: “Arre diabo, passa”;
cujas vozes não só foram conhecidas por ela informante, como por todos os seus
filhos e escravos. Depois que o cachorro deixou de gritar, ela informante, seus
filhos e escravos, ouviram de Vasco Bicudo do Amarante chamar, bem
destintamente seu filho, Nhôzinho, e os escravos Luiz e José, dizendo estas
palavras: “Venham que isso não é nada”, ao que ela informante disse para os
seus filhos teu pai ficou morto como nós vimos, e ele diz que não é nada,
corramos meus filhos, que ele nos está chamando para matar (pg 18).
Vasco ficou
preso por 16 meses, respondendo pelo crime, sendo, ao final, absolvido da
acusação, conforme se pode ver no mesmo processo (grafia original):
... da innocencia do
appellado, a qual na verdade, além de se achar na competencia do Tribunal de
Justiça tão evidenciada se acha tão bem no Tribunal da opinião pública desta
comarca igualmente reconhecida. Em vista pois disto, Senhor [referindo-se ao
Imperador] é líquido que o apellado está muito no cazo de ser absolvido, mesmo
do crime pelo qual acabou de ser condenado pela sentença da folha sessenta e
três verso.
Vasco foi,
pois, inocentado, partindo, logo a seguir, para a acusação de sua cunhada,
Carlota, como sendo a verdadeira mandante do crime. Estes dados aparecem em
outro processo: “Sumário de culpa ex-officio contra Carlota Joaquina de Liz e
todos os seus escravos”, de 1862[xiv].
Vejamos, então, a exposição apresentada por Vasco contra a cunhada:
Vasco Bicudo do Amarante,
morador na cidade de Lages infamemente caluniado como assacino de seo irmão
Felisberto Joaquim do Amarante, e que por tal crime o conservarão prezo
dezaseis mezes, respondendo durante esse tempo duas vezes perante ao jury,
sendo plenamente absolvido e querendo que a justiça discubra os verdadeiros
criminozos, para assim serem punidos, e ficar o Suppe.(suplicante) izento
d’essa nodôa, vem perante Vª Excª pedir que ordene às authoridades da Cidade de
Lages, para novamente sindicarem, afim de se descobrir os authores de tão
orrendo crime, pois é publico naquela Cidade, que a viuva do finado Felisberto
Bicudo do Amarate e escravos da cazada são cumplices nesse horrorozo crime,
imputar donde com mais affinco ao escravo Jozé. Procedendo Vª Excª com a devida
cautela, certo estou, de que descobrirão os authores, tanto mais sendo voz
publica de que a própria viuva, quando cazada com João Francisco Cidade Junior,
igualmente o assacinára, ministrando-lhe venêno. Actualmente, acha-se essa
viuva cazada com o filho do Suppe. com quem já tinha relações illicitas antes
da morte de seo irmão. Vª Excª poderá cordenar a verificação desse crime pelos
cidadãos honestos do Termo de Lages, bem como pelos do Lavatudo e milhor será
informado das circonstancias que existem. Tendo sido feita essa morte no dia
três de fevereiro de mil oito centos e cessenta e hum, foi chamado o Inspector
do quarteirão respectivo José N. Francisco, pelo Capitão José Marcellino, para
fazer acto de Corpo de Delicto, dando-lhe verbalmente minucioza parte do
ocorrido, o que cumprio, dezejando escrevel-a, e não an mirado a isso o mesmo
Capitão Marcellino, incontenente demittio ao mesmo Inspector, tornando-se assim
suspeito, na referida morte. A vista d’estes pontos que apresente o Suppe alem
de sua defeza, e nos geraes se indica de alguma forma os crimonozos de tão
horrendo crime; pede o Suppe a Vª Escª que obrando com justiça e imparcialidade
que o caracterizão, ordene a prizão dos criminozos, punindo-os como merecem.
Não tivemos
acesso ao processo de julgamento de Carlota Joaquina de Liz, somente a este
sumário de culpa ex-ofício. Mas, sabe-se pela história oral, que ela também foi
absolvida, ficando o crime sem solução.
Carlota faleceu
em 06 de outubro de 1884, e como pode ser observado em seu registro de óbito
(abaixo), ela ainda havia se casado uma terceira vez, com Francisco Vasco do
Amarante, ao que parece, sobrinho de Felisberto. Segundo depoimento de Vasco
Bicudo do Amarante (pai de Francisco Vasco), Carlota já seria amante de
Francisco Vasco enquanto Felisberto (seu marido, na época) ainda era vivo.
Fonte: Family Search. Registro de óbito de Carlota Joaquina de Liz e Abreu. Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-WX6?i=87&cc=2177296. Acesso em: 30 set. 2019. |
Enigma ainda
maior diz respeito ao falecimento deste último marido de Carlota (Francisco
Vasco do Amarante), que, de acordo com notícia de jornal, também teria sido
assassinado.
Fonte: Jornal Cearense. Notícias do Sul, Santa Catharina, Ano XXVIII, n. 78, de 25 de setembro de 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/709506/per709506_1874_00078.pdf. Acesso em: 30 set. 2019. |
Segue abaixo o
registro de óbito de Francisco Vasco do Amarante (09/08/1874), que apesar da
difícil leitura, parece informar que ele “appareceo
assassinado nos Campos de S. Antonio, Quarteirão do Portão”.
Fonte: Family Search. Registro de óbito de Francisco Vasco do Amarante. Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-W2F?i=45&cc=2177296. Acesso em: 30 set. 2019. |
Este,
portanto, é mais um mistério que ronda a história de nossos ancestrais
serranos.
Nota: Um fato curioso é que um dos descendentes de Felisberto,
Cezário Joaquim do Amarante, casou-se com a bisneta de João Batista de Souza
(Inholo), sendo este outro caso de assassinato na Serra, que já citamos algumas
vezes aqui no Blog e trabalharemos em detalhes em uma matéria posterior.
Referências
[i] Esse
estudo é uma adaptação dos conteúdos já publicados no livro “O voo das
curucacas: estudo genealógico de famílias serranas de Santa Catarina”, de 2013,
e no Blog Genealogia Serrana de SC (www.genealogiaserranasc.blogspot.com.br).
[ii] TJ SC,
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Museu
do Judiciário Catarinense. 2018. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/museu.
[iii] TJ SC,
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Resolução
n. 4/1991-TJ. Publicada em 18/02/1991. Disponível em: http://busca.tjsc.jus.br/buscatextual/integra.do?cdSistema=1&cdDocumento=1374&cdCategoria=1&q=&frase=&excluir=&qualquer=&prox1=&prox2=&proxc=.
[iv] SEA SC,
Secretaria do Estado da Administração, Santa Catarina. Arquivo Público. 2018. Disponível em: http://www.sea.sc.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=90&Itemid=248&lang=.
[v] URUPEMA,
Portal Municipal de Turismo. Fazenda do
Barreiro, Tradição e Cultura Serrana. Disponível em: https://turismo.urupema.sc.gov.br/equipamento/index/codEquipamento/2073.
Acesso em 23/09/2019.
[vi] Prefeitura
Municipal de Urupema. Hotel Fazenda do Barreiro. Disponível em: http://www.cidademaisfriadobrasil.com.br/visite-open.php?idLugar=6.
[vii] Fazenda
do Barreiro. A Fazenda. Disponível: http://www.fazendadobarreiro.com.br/site/fazenda.php.
[viii]
FAMILY Search. Registro de batismo de
Felisberto, 1796. Índice de batismos 1767-1884 (inclui batismos de filhos
livres de esc. 1872-1877). Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939Z-YRSR-N8?i=282&cc=1719212.
Acesso em 23/09/2019.
[ix] Dado
disponibilizado pelo pesquisador Rogério Palma de Lima. Registro disponível em:
https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-WX6?i=87&cc=2177296.
Acesso em 30 set. 2019.
[x]
Inventário de Felisberto Joaquim do Amarante, 1861.
[xi] FAMILY
Search. Registro de batismo de Vasco, 1793. Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939Z-YRSR-CW?i=261&cc=1719212.
Acesso em 23/09/2019.
[xii] FAMILY
Search. Registro de Óbito de Felisberto
Bicudo do Amarante, 1861. Disponível
em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-WGQ?i=19&wc=MFKV-K36%3A1030404201%2C1030404202%2C1030457301%3Fcc%3D2177296&cc=2177296.
Acesso em 23/09/2019.
[xiii] MUSEU
do Judiciário Catarinense. Translado dos Autos do Crime de apelação
ex-ofício interposta pelo Dr. Juiz de Direito da Comarca (Lages) da decisão do
júri que absolveu o réu Vasco Bicudo do Amarante, de 1861. Cx 22 (Lages),
Cx 77 Museu, nº 513.
[xiv] MUSEU
do Judiciário Catarinense. Sumário de culpa ex-officio contra Carlota
Joaquina de Liz e todos os seus escravos, de 1862. Cx 85 Museu, Cx 30
Lages.
Muito gratificante suas pesquisas. Fazem a gente viajar no passado de nossos parentes.
ResponderExcluirMuito interessante!!
ResponderExcluirEstou pesquisando minha família. Vocês poderiam me ajudar com mais informações dos Amarante?