Por Ismênia Ribeiro Schneider
Cada família possui uma história, diria, “secreta,” porque não conhecida das demais pessoas fora do círculo familiar, que se concretiza segundo um código de conduta, embasado nos valores morais e culturais que o casal carrega para o matrimônio. Mas o que é um casal, afinal? É a simbiose de duas personalidades, de dois corações que na troca de experiências vivenciais comuns, passam a formar uma identidade única, a tal ponto homogênea que não se consegue mais distinguir o que pertencia à bagagem afetivo-cultural de cada um dos cônjuges.
Tivemos o privilégio de ser filhos do casal Enedino Batista Ribeiro e Lydia Palma Ribeiro, cuja identidade era perfeita, o que permitiu que nos criássemos sem traumas, porque sabíamos que, sob nossos pés, a rocha firme daquele amor era a salvaguarda da nossa integridade.
O nosso lar viveu sempre, como sua característica principal, a realidade de abrigar uma família joaquinense, radicada e perfeitamente aculturada na capital do Estado. Tivemos uma vida um pouco diferente das demais famílias florianopolitanas, porque bipolarizada: de março a começo de dezembro permanecíamos na velha casa de estilo colonial, na Praça Getúlio Vargas. E de dezembro a fevereiro ficávamos na nossa granja no Pericó, perto do nossa cidade natal São Joaquim. Em Florianópolis a tônica era o estudo dos jovens, justificando a meta maior de nossos pais, que era propiciar estudo aos filhos. Havia no casarão dois centros nervosos: de um lado, a cozinha e a sala de jantar da “tia” Lydia (apelido carinhoso, “tio” e “tia”, com que os joaquinenses se tratam), onde acontecia a vida em grupo. Uma mesa para quinze ou mais pessoas congregava os ânimos. A um canto, um grande quadro de giz surpreendia pelo inusitado. Muitas vezes a comida esfriava para que algum de nós apresentasse algum problema, um desafio, que passava a ser discutido, no quadro, por todos. Essa parte da casa era o destino natural dos que iam chegando, pois ali ficava o reduto daquela que era o elo efetivo e afetivo de todos, nossa serena e amorosa mãe. Em lugar mais central encontrava-se o “gabinete do tio Nida”, o paciente e exímio mestre: foi ali, principalmente, que aprendemos a amar a História, a Geografia, a Literatura, a Música, a Astronomia, todos os saberes, já que todos eram objeto de seu interesse. Ali aconteciam as conversas pessoais, as “consultas”, o intercâmbio de idéias.
Na infância, quando ainda morávamos em São Joaquim , de manhã cedo, antes de irmos para as aulas, na única escola existente na cidade, o Grupo Escolar Manuel Cruz, que ocupava toda a atual Praça Cesário Amarante, tomávamos o “café com mistura” com bolinhos fritos na hora, mais as outras “misturas” normais.
Íamos para o nosso primeiro “sítio” (a Fazenda “Bela Vista”), as crianças, em carro-de-boi, e o “Tio Nida” e a “Tia Lydia” a cavalo, cuidando da comitiva. Muitas vezes, corríamos ao lado do carro; a Iponá, que detestava a condução que os outros adorávamos, queria sempre “ir a pá”, como ela falava, de modo que acabava sendo levada na “garupa” do Pai...
Nossa vida social centrava-se principalmente nas visitas que as irmãs Palma que moravam na cidade, faziam-se mutuamente, carregando junto todos os filhos, para “passar a tarde na casa desta ou daquela irmã”. Não sei como elas aguentavam, pois nos reuníamos a fazer folia sempre mais de doze primos, pois a maioria das famílias eram numerosas. A Iponá era uma das mais brincalhonas, fazendo sempre amigos, que a acompanharam para o resto da vida, pois sempre se caracterizou por ter um carisma especial.
No final da década de 1940 e em toda a de 50, época de nossa juventude, poucas famílias possuíam, em Florianópolis, telefone, carro ou televisão. O lazer da mocidade consistia na leitura, no cinema e nos bailes, nas “soirées-dançantes”, ora no clube “Doze de Agosto”, ora no “Lira Tênis Clube”. Às moças não era permitido freqüentar, desacompanhadas, esses ambientes. Durante muitos anos, nos finais de semana, a tarefa de nossos pais era nos acompanhar. Hoje, imagino que tal obrigação lhes fosse pesada, mas na época nunca os sentimos contrariados em nos proporcionar tal distração. Sob seus cuidados nos acompanhavam outras meninas, vizinhas, primas ou colegas. Somente quando os filhos homens foram considerados “responsáveis”, é que assumiram a missão de acompanhar as irmãs. A partir daí, creio que num discreto sistema de controle, criou-se o hábito de irmos ao quarto do casal “contar as novidades”, tão logo voltássemos para casa.
A casa vizinha na Praça Getúlio Vargas era dos Szpoganicz, sendo que a Iponá, já desde nova, flertava com o vizinho, namorando à janela com o Erasmo.
Com nossos pais, vindos da cultura joaquinense, aprendemos o dom da hospitalidade: nossa casa estava permanentemente aberta aos amigos e parentes. Havia sempre um lugar à mesa, ou uma cama para a visita inesperada. Criados em duas famílias numerosas, sentiam-se à vontade e contentes rodeados por muitas pessoas. Esta foi uma das principais heranças da Iponá, que perpetuou em todos os cantos do mundo por onde viveu: o acolhimento e receptividade, sempre trazendo para junto de si os parentes e amigos. É a sua marca registrada! Até hoje recebe em sua casa pessoas de todas as partes do mundo.
Um traço que distinguia nossos pais era o grande amor que nutriam por sua terra natal. Sentiam uma profunda nostalgia das paragens de sua infância. Esse sentimento toca a todos nós, os irmãos, mas especialmente Iponá, que não pode passar muito tempo sem voltar para sua querência e seus amigos. Como ela diz, “aqui eu sou feliz”.
O nosso paraíso era a pequena fazenda que possuíamos a 25 Km de São Joaquim, no Pericó, onde passávamos as férias de dezembro a março. Ali se fortalecia o sentimento de camaradagem, pois o grupo se tornava mais coeso e alegre, para melhor usufruir as delícias que nos eram proporcionadas: passeios a pé e a cavalo, participação nas lides campeiras, nos rodeios, etc. De manhã cedo, éramos despertados para tomar, na cama, o camargo. A Iponá, revelava-se uma verdadeira amazona, sendo a principal companheira do pai nas lidas campestres e também nas compras no Pericó.
Durante essa temporada, uma das nossas maiores alegrias eram os passeios à cidade, principalmente para o baile de gala do Clube “Astréa”, no começo do ano. Cada um ficava na casa de um tio diferente, mas na hora da entrada no baile, porque se tornara um acontecimento na cidade, entrávamos juntos, os onze. A festa era animada pelo famoso conjunto “Jazz Pedacinho do Céu” que, à nossa chegada, parava o que estivesse tocando, para nos receber com o tango “Sonho Azul”, emblema da família. A Iponá, alta e esguia, de belo rosto sorridente, arrasava corações.
À noite, no sítio, nos reuníamos na “cozinha de chão”, onde era aceso um fogo, ao redor do qual nos sentávamos a contar “causos” de cobras, de assombração, de histórias das famílias Palma e Ribeiro, comendo milho verde ou pinhão, assados no borralho. Nas noites muito escuras e secas, quando o céu parecia um veludo negro bordado de dourado, saíamos a estudar os astros. A Iponá era sempre uma das últimas a se recolher, pois não queria perder nada dos acontecimentos.
A nossa aniversariante foi uma das primeiras a namorar entre as filhas mulheres e a terceira delas a se casar, com seu amor de toda a vida, Erasmo. Ela preferiu não trabalhar fora e se dedicar à família e filhos, que foram muitos, seis ao todo, dois homens: Eduardo e Erasmito e quatro mulheres: Eunice, Eleonora, Beatriz e Raquel. Erasmo fez concurso para o Banco do Brasil e nas suas atividades profissionais como gerente começou a viajar com a família: Foz de Iguaçu, Braço do Norte, Florianópolis, quando foi nomeado diretor do BESC na capital, sendo dali promovido a diretor do Banco do Brasil, seguindo carreira no Exterior: Uruguai, Peru, Espanha, Colômbia, onde se aposentou. Para Iponá e sua prole esta foi uma experiência ímpar, pois propiciou inúmeras oportunidades culturais, sociais e vivencias para toda a família.
Em todas essas andanças Iponá sempre teve o coração voltado para a terra natal, suas paisagens, seus hábitos, seus parentes e amigos.
Neste momento, em que aqui estamos para homenageá-la, em seu aniversário de 75 anos, se tornam mais que nunca verdadeiros os versos de nosso velho poeta Casimiro de Abreu:
“Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”
Florianópolis, março de 2011.
Obrigada!
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