terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Maíra

Na postagem de hoje, apresentamos um conto escrito por Ismênia Ribeiro Schneider, baseado em uma história real da sua família.

Maíra
(Ismênia Ribeiro Schneider)

Sentado na varanda, em frente à casa, Marcos ritmava os pensamentos com a cadência da cadeira de balanço, recordando aquela primeira conversa:
– Essa é a história mais estranha que já ouvi; o fato de ela ser sua filha me intrigava, confesso.
– Minha mulher e eu não costumamos contá-la aos estranhos que muitas vezes se hospedam aqui em São João de Pelotas.
– Por que, pode me dizer?
– Ela é como se fosse nossa filha de verdade e não achamos que precisamos dar explicações sobre o fato de ser índia. Não é da conta de ninguém.
– E por que abriram uma exceção para mim?
– O senhor vai ficar por aqui três meses. Há muita lenda em torno da menina e preferimos que conheça a versão correta.
– Eu lhe agradeço a confiança!
– Muito bem, rapaz! Já que vai morar conosco uns tempos, é bom que se acostume com o jeito diferente dela. Minha mulher ensinou-lhe tudo o que uma moça da nossa condição deve saber, mas não conseguimos dominar o seu temperamento índio e desistimos. Ela é feliz e isso é o que importa. Veio preencher a enorme falta de filhos que tínhamos. Vive mais livremente que qualquer moça daqui e não se sujeita aos padrões normais...
Chegara há quinze dias. Era mascate e viera de São Paulo entregar às fazendas da região as encomendas do Natal. Substituía o pai, cansado de viajar. Este não lhe contara, porém, sobre Maíra, a filha índia do Coronel Licurgo Machado. Ela o intrigara desde o momento em que a vira pela primeira vez, cavalgando, à maneira masculina, um garanhão, sem o costumeiro selim usado pelas mulheres. Era tranqüila e calada, mas tão intensamente viva que as outras pessoas pareciam sombras a seu lado. Achara-a bela, com os olhos de sua raça, muito grandes e negros; negros, longos e espessos os cabelos. Raramente sorria e pouco falava; quando o fazia, porém, a voz macia, pausada e feminina fazia bem, acostumado que estava com as vozes estridentes de suas conterrâneas. Não era muito alta, mas esguia, sem nenhuma gordura. Os malares largos era o que menos lhe agradara, mas com o passar dos dias foi vendo que aqueles olhos só ficariam bem naquela estrutura óssea.
Havia uma ameaça velada nas palavras do coronel. O pai o alertara severamente sobre o perigo de se envolver com as mulheres das fazendas, quer as senhoras, quer as mulheres e filhas dos peões; mesmo com as escravas não era seguro meter-se. Ali a honra era lavada com sangue e a justiça feita pelos próprios coronéis.
Então fora assim que ela se tornara filha da casa? A mãe que surgira das bandas do Rio Grande e viera dar na fazenda, do lado catarinense do rio Pelotas. Não contara de quem ou de que fugia. Simplesmente aparecera, só e grávida. Afeiçoara-se ao casal e, ao morrer, por ocasião do nascimento da filha, entregara-a a eles. Registrada legalmente, chamaram-na Maíra – a única – em língua indígena.
Na Europa, e mesmo nas grandes cidades brasileiras do litoral, as mulheres já gozavam de alguma liberdade, mas ali, neste ano de 1850, ainda vigoravam rígidas leis... mulher não devia aprender a escrever, nem andar sozinha, nem escolher o próprio marido, etc. Interessante terem-na educado assim. Montava como um rapaz, acompanhava o pai na supervisão da fazenda, tivera professor por quatro anos, andava sozinha pelas redondezas... Devia ser motivo de escândalo e curiosidade na pequena vila de São Joaquim, onde passavam o Natal. O poder do coronel fechava as bocas, imaginava...
Os dias continuavam a correr tranquilos. Afora às vezes em que negociava nas fazendas vizinhas, participava de todas as lidas do campo: vacinações e o sal, dado ao gado nos rodeios. Nas invernadas mais distantes ficava o gado chucro, atendido por todo pessoal da fazenda, ajudado, às vezes, pela vizinhança. Esse trabalho era o mais perigoso; só se podia fazê-lo a cavalo, quando os melhores laçadores tinham ocasião de mostrar suas habilidades. Assistira um touro matar um dos cavalos e, por pouco, não fazer o mesmo com o peão. Nessas ocasiões era morta uma rês gorda, e o moquém armado no próprio local do rodeio. Aos sábados, os peões iam ao “poço fundo”, no Pelotas, nadar e tomar o “banho geral”. Todas as noites, no galpão, fazia-se “fogo de chão”, assava-se uma manta de charque ou era feito um arroz carreteiro; assavam milho verde no espeto e o café de tropeiro era servido, quentíssimo, em canecos esmaltados, a “pinga” correndo a roda. As conversas se prolongavam e muitos “causos” eram contados, de assombração, de valentias com onças, cobras e gado bravo... O coronel aparecia e participava das rodadas, fumando o seu “paieiro”. A casa grande também possuía a sua “cozinha de chão”, onde a família se reunia com as escravas.
A admiração de Marcos crescia, à medida que os dias passavam. A perfeita organização e autonomia da propriedade, a atividade incessante, a calma e tranquilidade do lugar o encantavam. Perguntava-se amiúde se não preferiria pertencer a essa gente altiva, dura, mas hospitaleira. Mas sendo o que era, um paulista até a raiz dos cabelos, nada o fazia esquecer o burburinho, o movimento, a vida noturno de sua cidade... Nada? Já não estava tão certo. Tinha que confessar que uma avassaladora paixão o empurrava para a jovem índia.
Não poderia precisar quando as coisas começaram a acontecer. Sentia a atenção concentrada e intensa dela. Havia como que um fluido entre eles. Procurava disfarçar. Dona Cidinha não era nenhuma tola, menos ainda o coronel. Será que eles não sentiam a tensão? Precisava fugir enquanto era tempo! Mas o próprio perigo o atraía. Observava-lhe os movimentos envolventes. Era como uma aranha tecendo, inexoravelmente, a teia: plácida, suave e ternamente. Ela mesma planejava os encontros; Marcos não compreendia como descobria todos os passos que dava, pois estava sempre invisível. Surgia de repente, com tal intensidade de presença que o deixava estonteado. Quando, afinal, tudo aconteceu, ele nada mais fez do que se deixar levar. Enquanto não estava com ela, sofria cada minuto da ausência, e quando estavam juntos, assustava-o a violência daquele amor.
Estava metido até o pescoço numa enrascada; por mais que a moça o tivesse preso, não perdia a sensação da urgência da fuga. E começou a planejá-la. Já estava completando o terceiro mês na região, fizera todas as entregas e aproveitaria a visita à última fazenda para desaparecer. Nada o salvaria, se descoberto. Para não levantar suspeitas deixaria parte de suas coisas. Isso lhe daria uns dois dias de vantagem. Sentia-se um miserável, um traidor! Mas não tinha coragem de fazer a troca... De noite terminou os preparativos e durante o “fogo de chão”, avisou que ia à fazenda do coronel Amâncio. Com Maíra fez a despedida costumeira de dois a três dias de ausência. Escuro ainda, partiu. Ao dobrar o morro, de onde se avistava toda a sede, a casa grande, a senzala, os galpões, as mangueiras redondas de taipa, voltou-se para um último adeus. Ao chegar ao mato, perto do rio, no vau que dava passagem, ouviu o barulho de folhas e galhos, pisoteados por um cavalo. Os cabelos da nuca arrepiaram-se, o coração disparou loucamente. Pensou rápido. Parecia haver um único homem, o coronel, naturalmente, mas deveria haver muitos, atocaiados no mato que precisava passar. Não poderia voltar. Engatilhou o revólver no momento exato em que um cavalo saltou, empinando, do barranco. Teve apenas tempo de reconhecer o cavaleiro e desviar o tiro que foi perder-se no meio das árvores. À sua frente, com um 38 apontado, Maíra encarava-o, friamente. Quando e como descobrira? Não demonstrara, em nenhum momento, saber da sua intenção. Aquela terrível percepção índia... não a levara em conta. Não adiantava falar, não havia justificativa para a vilania... restava morrer. Guardou o revolver e esperou.
Foi então que ouviu a frase mais longa desses três meses:
– Vai voltar comigo e casar, porque o meu filho não vai ficar sem pai! Sabe agora que nunca conseguirá escapar, pois não haverá uma segunda chance para o senhor.
Envergonhado, humilhado, surpreso, Marcos virou o cavalo, finalmente livre do peso da decisão...



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Taipas, casarões e costumes serranos


     O tempo passa célere e traz modernidades antes impensadas, importantes para a construção de nosso futuro. No entanto, as tradições de cada momento histórico, base de nossa identidade, perdem-se na poeira do tempo. Daí a necessidade do resgate de certos hábitos e costumes de um certo momento, pois através dele, conhecemos quem foram aqueles sujeitos, como viveram, quais eram seus valores e o que nos deixaram de herança sociocultural. Com isso, vamos ganhando consciência de onde viemos e de quem descendemos e, assim, pisamos firmes rumo ao nosso projeto de vida. 
         Apesar de não ter decorrido muito tempo na história, pouco se sabe sobre os costumes, tradições e o cotidiano das fazendas serranas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Como era o modo de vida e a cozinha das casas de fazenda? Como eram construídas as casas e as divisas? De que maneira era feito o controle e a criação de gado?
Nas últimas matérias, buscamos resgatar um pouco desses aspectos que acabaram se perdendo no tempo, de modo que, atualmente, as pessoas possuem pouco conhecimento da vida nas fazendas primitivas.
Nesta postagem, continuaremos esse resgate, apresentando trechos de alguns livros que tratam dos costumes e das construções típicas das fazendas serranas. Iniciamos versando sobre o uso das taipas de pedra, com trechos do livro A Casa do Planalto Catarinense: Arquitetura rural e urbana nos campos de Lages, séculos XVIII e XIX, de Fabiano Teixeira dos Santos[i].

Vestígios materiais dos mais importantes que se relacionam aos antigos caminhos de tropas do Planalto Serrano Sul-rio-grandense e Catarinense são os muros erguidos manualmente em ‘alvenaria de pedra de junta seca’, técnica conhecida na região como “taipa de pedra” ou simplesmente “taipa”, guarnecendo as estradas – corredores – e facilitando a condução das tropas de gado.
Popularmente denominados de “corredores de taipas”, esses caminhos murados beiram a monumentalidade ao atingirem em alguns trechos dezenas de quilômetros lineares ininterruptos. Sua construção se deu à custa dos fazendeiros locais e tropeiros (CURTIS, 2008, p. 173), mediante o emprego da mão de obra escravizada, e em aproveitamento da rocha basáltica que aflora em abundância nos campos locais, na forma de pedras soltas (p.132).
[...]
Por meio do emprego destas estruturas, cuja origem deve remontar às construções murárias primitivas de Portugal (CASELLA, 2003), também marcantes na paisagem do arquipélago dos Açores (ARQUITECTURA POPULAR DOS AÇORES, 1999), de onde vieram muitos dos povoadores da região, se configuravam as estradas, se dividiam as propriedades e se delimitavam as invernadas de criação do gado. Tais estruturas eram também utilizadas na confecção das mangueiras destinadas ao manejo do rebanho e para cercar os cemitérios rurais, destinados ao sepultamento do fazendeiro e sua família (CASTRO, 2011).
Para os corredores, divisas de campo e mangueiras, empregam-se para a construção da taipa uma seção de desenho trapezoidal, cuja altura é proporcional às larguras da base, maior, de forma a garantir a sustentação da estrutura, e do topo, menor. A medida da largura do topo geralmente é metade ou cerca de um terço da medida da largura da base (p. 134).
Diz-se “empregam-se” porque a construção de divisas e currais em taipa de pedra é uma técnica ainda em uso na região serrana, apesar de há muitas décadas o uso do arame farpado ter sido generalizado, pela facilidade de instalação e baixo custo.
É comum inclusive o reforço do fechamento com muros de alvenaria mediante a instalação de moirões de madeira com arame farpado correndo sobre as taipas, o que acaba tendo custo mais baixo que a manutenção das pedras. Afinal, hoje não existem mais peões cativos que se sujeitem às ordens do fazendeiro com esse propósito. Por tratar-se de tarefa habilidosa, geralmente consistindo em conhecimento transmitido ao longo de gerações de “taipeiros”, seu preço, cobrado por metro linear, atinge valores elevados, o que torna o uso do arame mais vantajoso. 
Tendo sido a construção de divisas e corredores de taipa de pedra uma tarefa árdua e trabalhosa, cabendo quase que exclusivamente aos escravos das fazendas, até hoje é comum ser o taipeiro negro ou mulato, pois herdou dos antepassados cativos o rude talento de encaixar pedras (SANTOS, 2015, p. 135).


                        

Figura 1 – Taipas de pedra demarcando o Caminho das Tropas.


É interessante observar que, segundo Licurgo Costa (1982), o uso do arame farpado para dividir fazendas começou em Lages, em uma escala mínima, somente no fim do século XIX. Nessa época, a taipa era mais barata do que o arame farpado. Como mencionado por Fabiano Teixeira dos Santos (2015), as taipas eram utilizadas, também, para a construção de mangueiras de pedra, que eram destinadas ao manejo do rebanho ou utilizadas para cercar os cemitérios rurais.
Sebastião Fonseca de Oliveira apresenta como um adendo ao seu livro Aurorescer das Sesmarias Serranas (1996), um trecho em que descreve as mangueiras existentes em São José dos Ausentes, Rio Grande do Sul:

Mangueiras de Pedra
  No município de São José dos Ausentes, Campos de Cima da Serra, existem quatro mangueirões antigos construídos de pedras, em data ainda não determinada (entre 1740 e 1808). Em agosto de 1995, o engenheiro agrônomo Hederaldo Paim Cesa efetuou a medição destes mangueirões:
1 – O da Fazenda Santo Antonio dos Ausentes tem a área de 9.307,75m², e a construção em forma de trapézio, com as seguintes dimensões: base maior 1,60m e a base menor (cabeceira) 1,10m. e altura 1,60m.
2 – O da Fazenda São José do Silveira (Sede) tem área de 6.182,00m². Dimensões: base maior 1,60m, base menor 1,30m e altura 1,70m.”
3 – O de Boa Vista localizado na mesma Fazenda São José do Silveira tem área de 2.741,48m². Dimensões: base maior 0,80m, base menor 1,10m e altura 1,75m.
4 – O do Chapadão localizado na mesma Fazenda São José do Silveira tem área de 2.741,48m². Dimensões: base maior 1,45m, base menor 1.00m e altura 1,45m. e ainda de perímetro 164,00m.


Figura 2 - Mangueira Redonda de Taipas das Ruínas da Fazenda São João de Pelotas.



Figura 3 – Taipas cercando o Cemitério da Fazenda do Socorro, São Joaquim (SC).

            Também no livro Aurorescer das Sesmarias Serranas, Oliveira (1996, p. 322) descreve as construções de pedras - casas, mangueiras, potreiros e divisas:
“As benfeitorias construídas com material existente na região, como casa e galpões, com suas paredes de pedra regulando um metro de espessura, mais ou menos, eram cobertas de tabuinhas lascadas e as divisórias internas com tábuas lascadas e falquejadas com mais ou menos 3 metros de comprimento por 60 cm de largura. As tabuinhas das coberturas eram lascadas e cuteladas com 60 cm de comprimento e 20 cm de largura. Para fazê-las, escolhia-se um pinheiro adequado (lascador) e maduro que era cortado em mês sem a letra R, e na lua nova, cortando as toras e lascando da ponta para o pé. As pedras das construções de mangueiras, potreiros e divisas eram transportadas em uma “Zorra” que é uma forquilha de árvore com madeiras atravessadas. A Zorra com as pedras era arrastada por bois carreiros ou mulas.
  Os galpões de esteios, com armações de madeira de lei, cobertos com tabuinhas, e paredes de pedra ou tábuas lascadas, tinham o piso de torrão (saibro) bem batido” (OLIVEIRA, 1996, p. 322).


Figura 4 - Bois carreiros transportando pedras na Zorra. Fonte: OLIVEIRA, 1996, adendo.


            Sobre as casas e o modo de vida nas primitivas fazendas, Licurgo Costa (1982, pp. 1482-1483) escreveu um trecho intitulado “O lento progresso na vida do fazendeiro”, do qual extraímos alguns excertos:
            As casas dos fazendeiros lageanos “eram paupérrimas e às vezes quase miseráveis. Os fazendeiros mais fortes, já em meados do século passado [século XIX], construíam-nas de pedras, com paredões externos como se fossem de fortaleza, beirando um metro de largura. Na verdade, era assim porque em tempo de escravos e de perigo de assaltos, as casas deviam oferecer grande segurança. Um pormenor significativo na planta normal das casas, não apenas em Lages mas em todo o Brasil, que dá bem a ideia das preocupações que deviam tomar os fazendeiros, eram os quartos internos, para dormir, sem janelas para o exterior, principalmente para as crianças e moças. Mas, não apenas as casas eram modestíssimas, no sentido geral, como o seu mobiliário, também muito pobre [...].
            No início, digamos da fundação até o fim do século XIX, [havia] apenas a mesa grande da sala de jantar, com bancos e não com cadeiras, um armário altíssimo, fundíssimo e fechado, que era o “guarda-comida”, um pote de cerâmica ou moringa para a água fresca. Nos quartos, os catres da armação rústica, com estrado de tiras de couro, e as canastras para a roupa, fazendo às vezes de armário. Nessas canastras havia algum requinte no trabalho de forração externa, de couro escolhido, para os quartos das moças entre os mais vistosos, de gado oveiro vermelho, “pintado” ou todo vermelho, enquanto que para os quartos dos “velhos”, eram selecionados couros mais discretos. Em geral, nesses quartos, nem mesinha de cabeceira usavam, e os tapetes, quando os havia, eram de couro de terneiros, mas muito mal curtidos, duros, meio enrugados. Na sala de visita, além de duas mesinhas com jarras e um ou outro enfeite, havia, nas casas muito ricas, o grupo de sofá de palhinha e as cadeiras. No fim do século passado [XIX] muitas dessas mobílias de sala eram importadas da Europa, principalmente da Áustria, onde existia um artesanato famoso de vime. Ainda atualmente [1980] se encontram em Lages remanescente de tais mobílias, que poderiam servir para um “museu do fazendeiro”, a ser criado.
            As cozinhas, sempre de chão, não tinham fogão, mas trempes de ferro ou ganchos seguros nas travessas do teto, sempre sem forro, onde penduravam os panelões, a imensa chaleira de ferro grosso. Mas que comida, que prato riquíssimos saíam destas trempes! Era o feijão com toucinho e charque gordo, os guisados com batatas paraguaias e manjerona e cebolinha; o arroz fumegante e cheiroso, feito tudo na banha de porco derretida; era o lombinho frito de porco; o quibebe com um tipo de abóbora amarela saborosíssimo; o tutu de feijão com torresmo; o frango ensopado, enfim, uma cozinha simples, porém gostosíssima. E para os rodeiros, no fundo do campo, que exigiam o dia inteiro, com almoço fora de casa: o “revirado”, a paçoca de charque, com café tropeiro. No capítulo das sobremesas não havia, como no norte do Brasil, grandes variedades, mas sempre se tinha o bom arroz-doce com canela ou cravo-do-reino, a coalhada com rapadura, as marmeladas feitas em casa, de frutas crioulas, guardadas em “caixetas”. Para beber: o café de coador, o “camargo”, o chimarrão. Bebidas alcoólicas – vinho e cerveja – só apareceram em escala maior muito tarde, por volta da Proclamação da República. A cachaça, então, já era usada de longa data.
            Aliás, esta menção à cozinha do fazendeiro de passável situação econômica se refere, obviamente, a uma época já bem avançada do século XIX. Do tipo de vida do fazendeiro pioneiro, como em outros aspectos da História de Lages, o que se sabe é por inferência. Sobretudo, baseada na suposição de que era idêntica à do pioneiro do Continente do Rio Grande.
            E lá a base da alimentação era a carne. Quanto às moradias e o modo de viver dos primitivos gaúchos, há um depoimento de Saint Hilaire, que visitou a província por volta de 1820, realmente impressionante. Diz o famoso observador francês:
“Os mineiros gastam o dinheiro que possuem com ostentação; os rio-grandenses têm muitas vezes uma fortuna considerável, mas, quem vê suas residências e a forma por que vivem, julga-os indigentes”.
            A vida cotidiana do fazendeiro lageano não condizia, pois, com suas posses. Era modestíssima, como a do rio-grandense, e assim foi desde o começo até o início do atual século [XX] quando, talvez, pela influência das colônias alemãs e italianas, começa a melhorar. Na verdade, acostumados a um tipo de vida espartana, não sentiam necessidade de grande conforto ou de melhor mesa. Só muito lentamente emergem dessa situação. Mas o primeiro sintoma de progresso é a preocupação com a educação dos filhos, que [...] começou a tomar vulto quando os Padre Jesuítas e as Irmãs de Caridade abriram os colégios de São Leopoldo, que granjearam altíssimo conceito em todo o sul do Brasil. Os filhos que voltavam de lá, nas férias e depois de terminado o curso secundário, e que iam para as “Academias” de Direito, Medicina ou Engenharia, foi que provocaram, ajudados também por maiores facilitadores de comunicação, a modificar a vida das velhas famílias da elite econômica local (COSTA, 1982, pp. 1482-1483).

Figura 5 - Casa de pedra da Fazenda do Socorro, pertencente à Família Martins.



Figura 6 - Sede da Fazenda São João, Lages. Foto: Ary Barbosa de Jesus Filho, Revista História Catarina, ano XI, n. 78, 2016.




Figura 7 - Casa da Fazenda Limoeiro, Lages. Foto: Fabiano Teixeira dos Santos, Revista História Catarina, ano XI, n. 78, 2016.




Figura 8 - Casa da Fazenda Guarda-Mór, que existiu na Coxilha Rica, Lages. Pertenceu a Laureano José Ramos. Acervo Museu Thiago de Castro. Fonte: Revista História Catarina, ano XI, n. 78, 2016.




Figura 9 - Vista Geral da Sede da Fazenda do Socorro, em 1945.



Referências

COSTA, Licurgo. O continente das Lagens – sua história e influência no sertão da terra firme. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, v. 4, 1982.

OLIVEIRA, Sebastião Fonseca. Aurorescer das Sesmarias Serranas: História e Genealogia. Porto Alegre: Edições EST, 1996.




[i] SANTOS, Fabiano Teixeira. A Casa do Planalto Catarinense: Arquitetura rural e urbana nos campos de Lages, séculos XVIII e XIX. Lages (SC): Super Nova, 2015. 220p.: il.