Na postagem de hoje, apresentamos um conto escrito por Ismênia Ribeiro
Schneider, baseado em uma história real da sua família.
Maíra
(Ismênia Ribeiro Schneider)
Sentado na varanda, em frente à casa, Marcos ritmava os pensamentos com a
cadência da cadeira de balanço, recordando aquela primeira conversa:
– Essa é a história mais estranha que já ouvi; o fato de ela ser sua
filha me intrigava, confesso.
– Minha mulher e eu não costumamos contá-la aos estranhos que muitas
vezes se hospedam aqui em São
João de Pelotas.
– Por que, pode me dizer?
– Ela é como se fosse nossa filha de verdade e não achamos que precisamos
dar explicações sobre o fato de ser índia. Não é da conta de ninguém.
– E por que abriram uma exceção para mim?
– O senhor vai ficar por aqui três meses. Há muita lenda em torno da
menina e preferimos que conheça a versão correta.
– Eu lhe agradeço a confiança!
– Muito bem, rapaz! Já que vai morar conosco uns tempos, é bom que se
acostume com o jeito diferente dela. Minha mulher ensinou-lhe tudo o que uma
moça da nossa condição deve saber, mas não conseguimos dominar o seu
temperamento índio e desistimos. Ela é feliz e isso é o que importa. Veio
preencher a enorme falta de filhos que tínhamos. Vive mais livremente que
qualquer moça daqui e não se sujeita aos padrões normais...
Chegara há quinze dias. Era mascate e viera de São Paulo entregar às
fazendas da região as encomendas do Natal. Substituía o pai, cansado de viajar.
Este não lhe contara, porém, sobre Maíra, a filha índia do Coronel Licurgo
Machado. Ela o intrigara desde o momento em que a vira pela primeira vez,
cavalgando, à maneira masculina, um garanhão, sem o costumeiro selim usado
pelas mulheres. Era tranqüila e calada, mas tão intensamente viva que as outras
pessoas pareciam sombras a seu lado. Achara-a bela, com os olhos de sua raça,
muito grandes e negros; negros, longos e espessos os cabelos. Raramente sorria
e pouco falava; quando o fazia, porém, a voz macia, pausada e feminina fazia
bem, acostumado que estava com as vozes estridentes de suas conterrâneas. Não
era muito alta, mas esguia, sem nenhuma gordura. Os malares largos era o que
menos lhe agradara, mas com o passar dos dias foi vendo que aqueles olhos só
ficariam bem naquela estrutura óssea.
Havia uma ameaça velada nas palavras do coronel. O pai o alertara
severamente sobre o perigo de se envolver com as mulheres das fazendas, quer as
senhoras, quer as mulheres e filhas dos peões; mesmo com as escravas não era
seguro meter-se. Ali a honra era lavada com sangue e a justiça feita pelos
próprios coronéis.
Então fora assim que ela se tornara filha da casa? A mãe que surgira das
bandas do Rio Grande e viera dar na fazenda, do lado catarinense do rio
Pelotas. Não contara de quem ou de que fugia. Simplesmente aparecera, só e
grávida. Afeiçoara-se ao casal e, ao morrer, por ocasião do nascimento da
filha, entregara-a a eles. Registrada legalmente, chamaram-na Maíra – a única –
em língua indígena.
Na Europa, e mesmo nas grandes cidades brasileiras do litoral, as
mulheres já gozavam de alguma liberdade, mas ali, neste ano de 1850, ainda
vigoravam rígidas leis... mulher não devia aprender a escrever, nem andar
sozinha, nem escolher o próprio marido, etc. Interessante terem-na educado
assim. Montava como um rapaz, acompanhava o pai na supervisão da fazenda,
tivera professor por quatro anos, andava sozinha pelas redondezas... Devia ser
motivo de escândalo e curiosidade na pequena vila de São Joaquim, onde passavam
o Natal. O poder do coronel fechava as bocas, imaginava...
Os dias continuavam a correr tranquilos. Afora às vezes em que negociava
nas fazendas vizinhas, participava de todas as lidas do campo: vacinações e o
sal, dado ao gado nos rodeios. Nas invernadas mais distantes ficava o gado
chucro, atendido por todo pessoal da fazenda, ajudado, às vezes, pela
vizinhança. Esse trabalho era o mais perigoso; só se podia fazê-lo a cavalo,
quando os melhores laçadores tinham ocasião de mostrar suas habilidades.
Assistira um touro matar um dos cavalos e, por pouco, não fazer o mesmo com o
peão. Nessas ocasiões era morta uma rês gorda, e o moquém armado no próprio
local do rodeio. Aos sábados, os peões iam ao “poço fundo”, no Pelotas, nadar e
tomar o “banho geral”. Todas as noites, no galpão, fazia-se “fogo de chão”,
assava-se uma manta de charque ou era feito um arroz carreteiro; assavam milho
verde no espeto e o café de tropeiro era servido, quentíssimo, em canecos
esmaltados, a “pinga” correndo a roda. As conversas se prolongavam e muitos
“causos” eram contados, de assombração, de valentias com onças, cobras e gado
bravo... O coronel aparecia e participava das rodadas, fumando o seu “paieiro”.
A casa grande também possuía a sua “cozinha de chão”, onde a família se reunia
com as escravas.
A admiração de Marcos crescia, à medida que os dias passavam. A perfeita
organização e autonomia da propriedade, a atividade incessante, a calma e tranquilidade
do lugar o encantavam. Perguntava-se amiúde se não preferiria pertencer a essa
gente altiva, dura, mas hospitaleira. Mas sendo o que era, um paulista até a
raiz dos cabelos, nada o fazia esquecer o burburinho, o movimento, a vida
noturno de sua cidade... Nada? Já não estava tão certo. Tinha que confessar que
uma avassaladora paixão o empurrava para a jovem índia.
Não poderia precisar quando as coisas começaram a acontecer. Sentia a
atenção concentrada e intensa dela. Havia como que um fluido entre eles.
Procurava disfarçar. Dona Cidinha não era nenhuma tola, menos ainda o coronel.
Será que eles não sentiam a tensão? Precisava fugir enquanto era tempo! Mas o
próprio perigo o atraía. Observava-lhe os movimentos envolventes. Era como uma
aranha tecendo, inexoravelmente, a teia: plácida, suave e ternamente. Ela mesma
planejava os encontros; Marcos não compreendia como descobria todos os passos
que dava, pois estava sempre invisível. Surgia de repente, com tal intensidade
de presença que o deixava estonteado. Quando, afinal, tudo aconteceu, ele nada
mais fez do que se deixar levar. Enquanto não estava com ela, sofria cada
minuto da ausência, e quando estavam juntos, assustava-o a violência daquele
amor.
Estava metido até o pescoço numa enrascada; por mais que a moça o tivesse
preso, não perdia a sensação da urgência da fuga. E começou a planejá-la. Já
estava completando o terceiro mês na região, fizera todas as entregas e
aproveitaria a visita à última fazenda para desaparecer. Nada o salvaria, se
descoberto. Para não levantar suspeitas deixaria parte de suas coisas. Isso lhe
daria uns dois dias de vantagem. Sentia-se um miserável, um traidor! Mas não
tinha coragem de fazer a troca... De noite terminou os preparativos e durante o
“fogo de chão”, avisou que ia à fazenda do coronel Amâncio. Com Maíra fez a
despedida costumeira de dois a três dias de ausência. Escuro ainda, partiu. Ao
dobrar o morro, de onde se avistava toda a sede, a casa grande, a senzala, os
galpões, as mangueiras redondas de taipa, voltou-se para um último adeus. Ao
chegar ao mato, perto do rio, no vau que dava passagem, ouviu o barulho de
folhas e galhos, pisoteados por um cavalo. Os cabelos da nuca arrepiaram-se, o
coração disparou loucamente. Pensou rápido. Parecia haver um único homem, o
coronel, naturalmente, mas deveria haver muitos, atocaiados no mato que
precisava passar. Não poderia voltar. Engatilhou o revólver no momento exato em
que um cavalo saltou, empinando, do barranco. Teve apenas tempo de reconhecer o
cavaleiro e desviar o tiro que foi perder-se no meio das árvores. À sua frente,
com um 38 apontado, Maíra encarava-o, friamente. Quando e como descobrira? Não
demonstrara, em nenhum momento, saber da sua intenção. Aquela terrível
percepção índia... não a levara em conta. Não adiantava falar, não havia
justificativa para a vilania... restava morrer. Guardou o revolver e esperou.
Foi então que ouviu a frase mais longa desses três meses:
– Vai voltar comigo e casar, porque o meu filho não vai ficar sem pai!
Sabe agora que nunca conseguirá escapar, pois não haverá uma segunda chance
para o senhor.
Envergonhado, humilhado, surpreso, Marcos virou o cavalo, finalmente
livre do peso da decisão...
Seu texto me fez lembrar Simões Lopes Neto! muito bom!
ResponderExcluirObrigada Catia... um pouco de exagero seu!! Mas me deixa feliz!
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