segunda-feira, 30 de setembro de 2019

ASSASSINATOS NA COMARCA DE LAGES NO SÉCULO XIX[i]


Ismênia Ribeiro Schneider
Daniela Ribeiro Schneider
Cristiane Budde

            A história oral serrana nos conta que, nos séculos XVIII e XIX, muitas desavenças e conflitos eram resolvidos com base na violência, resultando, às vezes, inclusive, em morte. Ouvimos falar, assim, de casos de assassinatos na Comarca de Lages, envolvendo personagens bem conhecidos da história local e familiar. Mas será que esses crimes tem algum tipo de registro?
            Resgataremos aqui alguns desses casos ocorridos na Serra Catarinense, buscando apresentar evidências e registros de documentos do Museu do Judiciário Catarinense e do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Estas foram importantes fontes para desvendar parte de crimes ocorridos, por exemplo, na Fazenda Santa Cruz (propriedade da conhecida Família Ribeiro), em 1850, e na Fazenda do Barreiro, em 1861, do qual trataremos na matéria de hoje.
            O Museu do Judiciário, inaugurado em outubro de 1991, localiza-se em Florianópolis (SC), e faz o resgate de documentos processuais antigos existentes nas Comarcas e no Tribunal de Justiça[ii]. Fazem parte do seu acervo, além de livros, esculturas, material iconográfico, material audiovisual, armas, móveis e utensílios ligados à História do Poder Judiciário de Santa Catarina e documentos[iii], como os processos-crime, que buscavam descrever o transcurso e o julgamento de crimes ocorridos nas Comarcas Catarinenses. Também o Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (em Florianópolis, SC), reúne importante acervo proveniente do Poder Executivo, do Legislativo e do Judiciário, possuindo documentos desde o período de 1703[iv].
            Os dados encontrados nesses locais somaram-se aqui aos registros de Enedino Batista Ribeiro, em seu livro Gavião-de-Penacho, e às lendas locais, que buscavam explanar os motivos dos assassinatos lembrados pela população serrana. O primeiro caso que apresentaremos, ocorreu na Fazenda do Barreiro, originária de fazendas contíguas em terras dos hoje municípios de Painel e Urupema (SC). Ela foi “fundada em 1782 pelo português José Joaquim Pereira”[v], e permanece com a oitava geração da mesma família[vi]. A “criação de gado de corte e de cavalos crioulos, a plantação de milho e feijão sempre colocaram a Fazenda do Barreiro como destaque no setor agropecuário”[vii]. Já as atividades de hotelaria foram iniciadas em 1986v.

Fazenda do Barreiro. Fonte: http://www.fazendadobarreiro.com.br/site/index.php.


O ASSASSINATO DE FELISBERTO
JOAQUIM DO AMARANTE (1796 – 1861)

            O crime em questão incidiu sobre a família Amarante, bastante conhecida na região serrana. A vítima do assassinato foi FELISBERTO JOAQUIM DO AMARANTE (ou Felisberto Bicudo do Amarante) (bat. 26/12/1796[viii] – 03/02/1861xii), filho de Miguel Bicudo do Amarante e de Anna Joaquina Boenavides (ou Benevides). Era casado com CARLOTA JOAQUINA DE LIZ (ou Carlota de Liz e Abreu) (1807 - 06/10/1884[ix]), filha de Nicolau de Liz e Abreu e de Umbelina Maria Pereira, descendentes da importante família Pereira, que primeiro povoou a região do Painel.
            Felisberto e a esposa Carlota tiveram os filhos: Felisberto, Policarpo, Maria, Cezário, Procópio e Cândido[x], dos quais destacamos Cezário Joaquim do Amarante (25/02/1852 – 10/08/1929), que foi o quarto prefeito do município de São Joaquim (SC), governando a cidade durante 28 anos, de 1898 a 1926.
            FELISBERTO foi assassinado a tiros, no dia 03 de fevereiro de 1861, em sua casa, na Fazenda do Barreiro. Sua esposa, presente no momento do crime, acusou como responsável pelo assassinato ao seu cunhado, irmão do morto, VASCO JOAQUIM DO AMARANTE (bat. 29/02/1793[xi]).

Fonte: Family Search[xii], Registro de óbito de Felisberto Amarante, 1861.


Nota: Eram irmãos de Felisberto Amarante: Vasco Joaquim do Amarante, Diogo José Bicudo do Amarante, Francisco Bicudo do Amarante, Antônio Joaquim do Amarante, Joaquim José do Amarante, Maria Euphrasia e Anna Maria de Boenavides.

            Esses dados foram acessados através do documento “Translado dos Autos do Crime de apelação ex-ofício interposta pelo Dr. Juiz de Direito da Comarca (Lages) da decisão do júri que absolveu o réu Vasco Bicudo do Amarante”, de 1861[xiii]. Aparece ali a inquirição do testemunho de Carlota, que assim narra, sob seu ponto de vista, a ocorrência do crime (grafia original):
... todos escravos haviam corrido para o mato logo que ouviram o primeiro tiro: o que sendo ouvido por ela, não esperou mais e correu com seu filho pela porta de trás; ao chegarem à cozinha ouviram um tiro e ao passarem a taipa junto ao Rio, ainda ouviram outro tiro; depois que passaram o rio do outro lado encontrou-se com o restante de seus filhos, e todos os escravos, exceto o Luiz e a Delfina. Daí seguiram todos juntos, e ainda ouviram no caminho, um tiro, o qual foi dado em um cachorro, que depois foi achado morto, cujo tiro ela informante julga ter sido dado pelo seu cunhado Vasco, porque ouviu ele dizer estas palavras: “Arre diabo, passa”; cujas vozes não só foram conhecidas por ela informante, como por todos os seus filhos e escravos. Depois que o cachorro deixou de gritar, ela informante, seus filhos e escravos, ouviram de Vasco Bicudo do Amarante chamar, bem destintamente seu filho, Nhôzinho, e os escravos Luiz e José, dizendo estas palavras: “Venham que isso não é nada”, ao que ela informante disse para os seus filhos teu pai ficou morto como nós vimos, e ele diz que não é nada, corramos meus filhos, que ele nos está chamando para matar (pg 18).
            Vasco ficou preso por 16 meses, respondendo pelo crime, sendo, ao final, absolvido da acusação, conforme se pode ver no mesmo processo (grafia original):
... da innocencia do appellado, a qual na verdade, além de se achar na competencia do Tribunal de Justiça tão evidenciada se acha tão bem no Tribunal da opinião pública desta comarca igualmente reconhecida. Em vista pois disto, Senhor [referindo-se ao Imperador] é líquido que o apellado está muito no cazo de ser absolvido, mesmo do crime pelo qual acabou de ser condenado pela sentença da folha sessenta e três verso.
            Vasco foi, pois, inocentado, partindo, logo a seguir, para a acusação de sua cunhada, Carlota, como sendo a verdadeira mandante do crime. Estes dados aparecem em outro processo: “Sumário de culpa ex-officio contra Carlota Joaquina de Liz e todos os seus escravos”, de 1862[xiv]. Vejamos, então, a exposição apresentada por Vasco contra a cunhada:
Vasco Bicudo do Amarante, morador na cidade de Lages infamemente caluniado como assacino de seo irmão Felisberto Joaquim do Amarante, e que por tal crime o conservarão prezo dezaseis mezes, respondendo durante esse tempo duas vezes perante ao jury, sendo plenamente absolvido e querendo que a justiça discubra os verdadeiros criminozos, para assim serem punidos, e ficar o Suppe.(suplicante) izento d’essa nodôa, vem perante Vª Excª pedir que ordene às authoridades da Cidade de Lages, para novamente sindicarem, afim de se descobrir os authores de tão orrendo crime, pois é publico naquela Cidade, que a viuva do finado Felisberto Bicudo do Amarate e escravos da cazada são cumplices nesse horrorozo crime, imputar donde com mais affinco ao escravo Jozé. Procedendo Vª Excª com a devida cautela, certo estou, de que descobrirão os authores, tanto mais sendo voz publica de que a própria viuva, quando cazada com João Francisco Cidade Junior, igualmente o assacinára, ministrando-lhe venêno. Actualmente, acha-se essa viuva cazada com o filho do Suppe. com quem já tinha relações illicitas antes da morte de seo irmão. Vª Excª poderá cordenar a verificação desse crime pelos cidadãos honestos do Termo de Lages, bem como pelos do Lavatudo e milhor será informado das circonstancias que existem. Tendo sido feita essa morte no dia três de fevereiro de mil oito centos e cessenta e hum, foi chamado o Inspector do quarteirão respectivo José N. Francisco, pelo Capitão José Marcellino, para fazer acto de Corpo de Delicto, dando-lhe verbalmente minucioza parte do ocorrido, o que cumprio, dezejando escrevel-a, e não an mirado a isso o mesmo Capitão Marcellino, incontenente demittio ao mesmo Inspector, tornando-se assim suspeito, na referida morte. A vista d’estes pontos que apresente o Suppe alem de sua defeza, e nos geraes se indica de alguma forma os crimonozos de tão horrendo crime; pede o Suppe a Vª Escª que obrando com justiça e imparcialidade que o caracterizão, ordene a prizão dos criminozos, punindo-os como merecem.
            Não tivemos acesso ao processo de julgamento de Carlota Joaquina de Liz, somente a este sumário de culpa ex-ofício. Mas, sabe-se pela história oral, que ela também foi absolvida, ficando o crime sem solução.
            Carlota faleceu em 06 de outubro de 1884, e como pode ser observado em seu registro de óbito (abaixo), ela ainda havia se casado uma terceira vez, com Francisco Vasco do Amarante, ao que parece, sobrinho de Felisberto. Segundo depoimento de Vasco Bicudo do Amarante (pai de Francisco Vasco), Carlota já seria amante de Francisco Vasco enquanto Felisberto (seu marido, na época) ainda era vivo.

Fonte: Family Search. Registro de óbito de Carlota Joaquina de Liz e Abreu. Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-WX6?i=87&cc=2177296. Acesso em: 30 set. 2019.


            Enigma ainda maior diz respeito ao falecimento deste último marido de Carlota (Francisco Vasco do Amarante), que, de acordo com notícia de jornal, também teria sido assassinado.

Fonte: Jornal Cearense. Notícias do Sul, Santa Catharina, Ano XXVIII, n. 78, de 25 de setembro de 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/709506/per709506_1874_00078.pdf. Acesso em: 30 set. 2019.


            Segue abaixo o registro de óbito de Francisco Vasco do Amarante (09/08/1874), que apesar da difícil leitura, parece informar que ele “appareceo assassinado nos Campos de S. Antonio, Quarteirão do Portão”.

Fonte: Family Search. Registro de óbito de Francisco Vasco do Amarante. Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-W2F?i=45&cc=2177296. Acesso em: 30 set. 2019.


            Este, portanto, é mais um mistério que ronda a história de nossos ancestrais serranos.


Nota: Um fato curioso é que um dos descendentes de Felisberto, Cezário Joaquim do Amarante, casou-se com a bisneta de João Batista de Souza (Inholo), sendo este outro caso de assassinato na Serra, que já citamos algumas vezes aqui no Blog e trabalharemos em detalhes em uma matéria posterior.


Referências



[i] Esse estudo é uma adaptação dos conteúdos já publicados no livro “O voo das curucacas: estudo genealógico de famílias serranas de Santa Catarina”, de 2013, e no Blog Genealogia Serrana de SC (www.genealogiaserranasc.blogspot.com.br).

[ii] TJ SC, Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Museu do Judiciário Catarinense. 2018. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/museu.

[iii] TJ SC, Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Resolução n. 4/1991-TJ. Publicada em 18/02/1991. Disponível em: http://busca.tjsc.jus.br/buscatextual/integra.do?cdSistema=1&cdDocumento=1374&cdCategoria=1&q=&frase=&excluir=&qualquer=&prox1=&prox2=&proxc=.

[iv] SEA SC, Secretaria do Estado da Administração, Santa Catarina. Arquivo Público. 2018. Disponível em: http://www.sea.sc.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=90&Itemid=248&lang=.

[v] URUPEMA, Portal Municipal de Turismo. Fazenda do Barreiro, Tradição e Cultura Serrana. Disponível em: https://turismo.urupema.sc.gov.br/equipamento/index/codEquipamento/2073. Acesso em 23/09/2019.

[vi] Prefeitura Municipal de Urupema. Hotel Fazenda do Barreiro. Disponível em: http://www.cidademaisfriadobrasil.com.br/visite-open.php?idLugar=6.

[vii] Fazenda do Barreiro. A Fazenda. Disponível: http://www.fazendadobarreiro.com.br/site/fazenda.php.

[viii] FAMILY Search. Registro de batismo de Felisberto, 1796. Índice de batismos 1767-1884 (inclui batismos de filhos livres de esc. 1872-1877). Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939Z-YRSR-N8?i=282&cc=1719212. Acesso em 23/09/2019.

[ix] Dado disponibilizado pelo pesquisador Rogério Palma de Lima. Registro disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-WX6?i=87&cc=2177296. Acesso em 30 set. 2019.

[x] Inventário de Felisberto Joaquim do Amarante, 1861.

[xi] FAMILY Search. Registro de batismo de Vasco, 1793. Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939Z-YRSR-CW?i=261&cc=1719212. Acesso em 23/09/2019.

[xii] FAMILY Search. Registro de Óbito de Felisberto Bicudo do Amarante, 1861.  Disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-X959-WGQ?i=19&wc=MFKV-K36%3A1030404201%2C1030404202%2C1030457301%3Fcc%3D2177296&cc=2177296. Acesso em 23/09/2019.

[xiii] MUSEU do Judiciário Catarinense.  Translado dos Autos do Crime de apelação ex-ofício interposta pelo Dr. Juiz de Direito da Comarca (Lages) da decisão do júri que absolveu o réu Vasco Bicudo do Amarante, de 1861. Cx 22 (Lages), Cx 77 Museu, nº 513.

[xiv] MUSEU do Judiciário Catarinense.  Sumário de culpa ex-officio contra Carlota Joaquina de Liz e todos os seus escravos, de 1862. Cx 85 Museu, Cx 30 Lages.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Frei Rogério: O Apóstolo do Planalto



            Na matéria de hoje apresentamos mais informações sobre Frei Rogério, frade missionário que ficou conhecido na Serra Catarinense como o “Apóstolo do Planalto”, onde permaneceu por quase três décadas atuando como sacerdote e cuidando de enfermos.
            Como mencionamos na postagem anterior, Frei Rogério nasceu na Alemanha, em Borken, em 29 de novembro de 1863. Seu nome de batismo era Henrique Neuhaus, terceiro filho do casal João Geraldo Neuhaus e Cristina Haddick[i]. Vindo de um ambiente familiar religioso, aos 17 anos demonstrou sua vontade em se tornar religioso, apresentando-se no Convento de Harreveld, Holanda, onde foi aceitoi


Frei Rogério Neuhaus, OFM: grande missionário do Planalto Catarinense. Pintura de Frei Rogério, sem identificação de autoria, exposta no Convento Franciscano, OFM, em Lages-SC. Captura da imagem: julho de 2019, por Toni Jochem, a quem agradecemos.

Detalhe do quadro anterior. Captura da imagem: julho de 2019, por Toni Jochem.


            Destacamos aqui um trecho da biografia de Frei Rogério, disponibilizada no site da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil (OFM)[ii]:

No dia 03 de maio de 1881 recebeu o burel[iii] e o nome de Frei Rogério, iniciando com fervor a escalada para a santidade.
Na catedral de Pederborn, Alemanha, foi ordenado sacerdote, aos 17 de agosto de 1890, pelo bispo Dom Agostinho Gockel.
Levado pelo ideal missionário, associou-se à segunda leva de restauradores da Província da Imaculada Conceição do Brasil: 4 sacerdotes e 4 irmãos religiosos leigos.
Aportaram a 02 de dezembro de 1891 em Salvador, BA, mas já no dia seguinte prosseguiram viagem para o sul, desembarcando no Desterro (antigo nome da capital do Estado de Santa Catarina: Florianópolis) e chegando dia 12 de dezembro de 1891 em Teresópolis (agora: Vila Teresópolis, SC), a primeira residência dos frades restauradores no sul do Brasil.
Em 13 de fevereiro de 1892, foi enviado a Lages, SC, seguindo com tropeiros para o novo destino, que seria por longos anos seu campo de ação e de santificação, tornando-se verdadeiramente o “Apóstolo do planalto catarinense."

            Antes de vir ao Brasil, Frei Rogério já se mostrava atencioso para com os enfermos, conforme aponta Juliano Florczak Almeida (2019), em tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS:

 Quando estudava na Europa, cuidou dos colegas acometidos pelas epidemias de gripe. [...] Essa mesma atenção atravessou o oceano. E quando houve surto de gripe espanhola em Porto União e União da Vitória, cidades da fronteira entre Santa Catarina e Paraná onde frei Rogério atuou como vigário, novamente, o frade auxiliou os doentes. Era 1918 e, conforme escreveu um confrade de Rogério que também atuava na região à época, o número de gripados fora grande: A cidade toda parecia transformada num grande hospital”. De acordo com o mesmo franciscano, frei Rogério visitava todas as casas e tratava do corpo e da alma: “E frei Rogério, o anjo da caridade, ia de casa em casa, quase sem parar nem descansar, levando remédios para corpo e alma, [...] e tudo isso, quando ele mesmo se sentia fraco e meio gripado[iv].


Recortamos também desta tese (ALMEIDA, 2019), alguns trechos interessantes, que contam um pouco da trajetória do Frei no Planalto Serrano:

Não apenas em circunstâncias epidêmicas ou de guerra que se ocupava com os enfermos. O cuidado aos doentes fazia parte das tarefas diárias do período em que atuava no planalto catarinense: “Almoçava em seguida, esquecendo-se sempre a si mesmo, e contentando-se com o que lhe ofereciam, fosse o que fosse. Se já não o fizera de manhã, depois do almoço ia à procura de doentes, tendo que montar a cavalo e andar, às vezes, horas inteiras, fosse qual fosse o tempo” (SINZIG, 1939, p. 100 - grifos meus).
O frade saia à procura dos doentes assim como eles vinham em busca do auxílio do franciscano. [...].
[...] em Lages faltava o tempo, pois eram-lhe reclamados os serviços de sacerdote e de samaritano a cada hora. [...] Semanas depois [de peregrinar pela paróquia], regressava para Lages, onde, Deus sabe como, a notícia da sua volta, num instante, chegava a todos os recantos, fazendo muitas e muitas pessoas seguirem ao convento, para pedir algum remédio, ou procurando-o para visitar este ou aquele enfermo [...] (SINZIG, 1939, p. 97–100).
Não por acaso, frei Rogério também era acudido quando em enfermidade. Dia 23 de janeiro de 1912, ele ficou doente no município de Curitibanos. O médico que lhe atendeu ordenou que o levassem, às pressas, para Lages. Em pouco tempo, um confrade de frei Rogério juntou cerca de 30 homens para carregá-lo a um lugar com mais recursos. Quanto mais nos aproximamos da cidade de Lages, mais crescia a procissão, contou o confrade (SINZIG, 1939, p. 243-245).

[...] logo que chegou ao planalto catarinense, frei Rogério percebeu na população da região certa carência de assistência à saúde. Essa necessidade se ratifica pelo fato de que também os monges João Maria e José Maria distribuíam medicamentos. Diante dessa precisão, recorreu à medicina homeopática, que surgira na sua Alemanha natal no século anterior: “Mandou vir, então, uma farmaciazinha portátil, de homeopatia, começando a dar remédios a quem lhos pedia e a oferecê-los, ao encontrar algum doente” (Idem.). Não abandonou a atividade sequer quando a região já contava com médicos: “Mesmo quando, mais tarde, Lages já tinha um e mais médicos, à portaria do modesto conventozinho franciscano e viam constantemente pessoas da cidade e caboclos vindos de fora, com uma garrafa à mão, à espera de Frei Rogério e de seus remédios” (Idem).”
Na época em que frei Rogério chegou à região de Lages (final do século XIX), os matos nativos predominavam no planalto catarinense e as estradas eram inexistentes e os meios de transporte, precários (SINZIG, 1939, p. 92). Ainda assim, frei Rogério atuava em uma extensa área: Era maior do que muitos bispados, a imensa paróquia, que frei Rogério percorria, ora como coadjutor, ora como vigário [...]. Abrangia não só o extenso município de Lages, mas ainda os de São Joaquim, de Curitibanos e de Campos Novos, isto é, até às fronteiras, ao norte, do Paraná e, no sul, do Rio Grande. (Ibid., p. 92)”.


Em 1922, quando estava em Palmas (PR), Frei Rogério percebeu que estava perdendo a visão. Ao consultar um médico e verificar a gravidade da situação, foi aconselhado a procurar um centro mais equipado. Assim, transferiu-se para São Paulo e, depois, para o Rio de Janeiroi. Foi internado na Casa de Saúde São José, com câncer generalizado nos intestinos, em 01 de março de 1934. Faleceu alguns dias após, em 23 de março de 1934i, com fama de santidadeiv.


Frei Rogério. Fonte: Folha D'Ouro Verde: Informação ao alcance de todos![v]. 



Referências e notas


[i] FRANCISCANOS, Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. Frei Rogério Neuhaus. Disponível em: https://franciscanos.org.br/quemsomos/personagens/frei-rogerio-neuhaus/. Acesso em 09 set. 2019.

[ii] FRANCISCANOS, Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. Frei Rogério Neuhaus. Disponível em: https://franciscanos.org.br/quemsomos/personagens/frei-rogerio-neuhaus/. Acesso em 09 set. 2019.

[iii] Burel: Tecido grosseiro de lã, mais comumente de cor parda, castanha ou preta, para a confecção de vestes de religiosos (Dicionário Michaelis Online, http://michaelis.uol.com.br/).

[iv] ALMEIDA, J. F. Atos dos Bons Samaritanos – Romanização e Medicalização na Vida de Religiosos Católicos. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/194453/001093312.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 09 de setembro de 2019.

[v] FOLHA D'Ouro Verde: Informação ao alcance de todos! Frei Rogério Neuhaus: O Apóstolo do Planalto.


quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O PRIMEIRO BISPO NA SERRA CATARINENSE E OUTRAS CURIOSIDADES


        
Na matéria de hoje, apresentamos um texto enviado por Henrique Brognoli Martins, que descreve a passagem do primeiro Bispo Diocesano pela Serra Catarinense. Depois de uma breve introdução, seguem relatos de um diário e escritos de Frei Rogério, que narram um pouco da viagem do Bispo Dom José Camargo de Barros.
Frei Rogério era o terceiro filho de João Geraldo Neuhaus e Cristina Haddick, e nasceu em “29 de novembro de 1863, em Borken, Alemanha”[i]. O Frei “veio ser missionário no Brasil em 1891. Depois de atuar por quase três décadas no planalto de Santa Catarina, foi transferido ao Rio de Janeiro, onde acabou falecendo em 1934 com fama de santidade. Cuidadoso com os enfermos, distribuía remédios homeopáticos, visitava hospitais e doentes em suas casas, levando sacramentos e promovendo curas por meio de sua bênção” (ALMEIDA, 2019, p. 18).

Nota: Na próxima matéria, falaremos mais sobre Frei Rogério, que ficou conhecido na Serra como o “Apóstolo do planalto catarinense”.


"VERDADEIRA ORIGEM DO NOME DO CAMARGO", UMA BEBIDA MATINAL TÃO APRECIADA NA REGIÃO SERRANA CATARINENSE E GAÚCHA
(por Henrique Brognoli Martins
e João Carlos Martins Sbruzzi)


Abaixo, segue texto do livro de Frei Rogério (Rogério Neuhaus), de 1913, sobre uma viagem a São Joaquim em 1898, e relatos do diário de viagem do Dom José Camargo de Barros, bispo de Curitiba, que foi designado, aos 35 anos, pelo Papa Leão XIII, como o primeiro Bispo de Curitiba, em 16 de janeiro de 1894. Porém, faleceu em 04 de agosto de 1906, no naufrágio do transatlântico Sírio, no litoral da Espanha, quando retornava de Roma.

O relato da viagem é muito interessante, pois destaca as dificuldades de uma viagem à serra catarinense, o clima, o povo da época, costumes e, principalmente, a hospitalidade dos moradores e fazendeiros que acolheram a comitiva.

Nota: Mais informações sobre O Bispo Dom José Camargo de Barros em: http://www.arquisp.org.br/historia/dos-bispos-e-arcebispos/bispos-diocesanos/dom-jose-de-camargo-barros

Um fato interessante na história da Serra Catarinene, é que o Dr. Nilo Sbruzzi, dentista, juntamente com Dr. Gil Ungaretti, também dentista, oriundo de Laguna, atendiam o chamado dos fazendeiros da região para tratamento dentário de seus familiares e empregados, como era costume na época. Dessa forma, os dois acabavam percorrendo várias fazendas, entre elas a Fazenda do Socorro, onde por conta do grande número de pacientes, permaneceram por longa temporada.

O Dr. Nilo relatava que a bebida típica dos serranos denominada “camargo”, tem origem no nome do Bispo Dom Camargo, que, quando de sua visita à região serrana de Santa Catarina, apreciou muito a bebida.

 Dr. Nilo soube da origem do nome da bebida “camargo” pela crônica familiar,  pois a sua passagem pela Fazenda do Socorro resultou no casamento com a Maria de Lourdes Ribeiro Martins, filha de Adolfo José Martins e Dolores de Souza e Oliveira Ribeiro. Era também bisneta de Matheus Ribeiro, que em 1898 hospedou a comitiva de Dom Camargo na sua Casa de Pedra, sede da Fazenda do Socorro.

O “camargo” consiste no café preto engrossado, com apojo (leite mais consistente da vaca, ordenhado depois de se tirar o primeiro que é mais ralo). O clima frio dá uma personalidade única aos costumes e tradições da região serrana, e o “camargo” é até hoje a  bebida quente tradicional das manhãs geladas, tomado quase sempre nos galpões da ordenha. Esse costume se fez presente inicialmente na região serrana, desde a Coxilha Rica, em Lages, até a Costa da Serra. Posteriormente, foi divulgado e adotado aos poucos por outras regiões, inclusive a vizinha Serra Gaúcha.


Relato da Viagem
(Texto de Frei Rogério)

As condições religiosas  no Brasil nos últimos decênios, mudaram muito. A vinda de um Bispo – havia tão poucos em todo Brasil – a Lages era um acontecimento de todo extraórdinário.

O primeiro bispo – conta Frei Rogério nas suas recordações – que visitou a região serrana de Santa Catarina, foi Sua Excelência Dom José Camargo Barros, bispo de Curitiba. Ainda hoje (1913), decorridos quinze a dezesseis anos, todos falam com amor e veneração do piedoso e bondoso bispo, que por suas maneiras afetuosas, ganhou todos os corações.

Veio por Laguna e Tubarão para São Joaquim, que em 1898, pertencia a Paróquia de Lages. O reverendo padre frei Redento tinha se encarregado dos preparativos da recepção, chegando Sua Excelência Dom José Camargo Barros a São Joaquim em meados de outubro de 1898, de onde prosseguira a viagem para a pequena povoação de Painel, onde alguns dias antes, tinham chegado vários sacerdotes, a preparar o povo para a recepção dos santíssimos sacramentos.

Pelo fim de outubro, Sua Excelência chegou a Lages, sendo hospedado do modo mais cordial, pelo senhor Vitor Alves Brito. Embora, nesse tempo, a maçonaria começasse a levantar a cabeça, a população estava muito entusiasmada, sendo grande o número dos que receberam os santíssimos sacramentos. Na Festa de Todos os Santos e no dia de Finados, a igreja estava repleta até o último canto.

“O Padre Redento tinha ido esperar-me em Orleans, de modo que, de Orleans para cá, vieram o Padre Redento e o Padre Bernardo de Tubarão (Padre Bernardo Freuser, pároco de Tubarão de 1897 a 1908). O Padre Larcher voltou para Tubarão a fim de seguir para Desterro. Os Padres Others, Frederico e Antônio Manno ficaram em Orleans para fazer algum serviço.”

“O caminho vai margeando o rio Tubarão acima, depois rio Novo acima e, depois, rio Laranjeiras acima.”

E, no dia 19, quarta-feira (outubro de 1898), há nova informação: “Levantamos às 5 horas, tomamos café, partimos às 7. Os companheiros de Orleans aqui ficaram todos, seguimos acompanhados do mulatinho José e do moço Polycarpo, trazidos pelo Padre Redento, este morador do Distrito de São Joaquim, aquele de Lages.”
“Hoje fizemos a dificílima passagem da Serra do Imaruím, gastamos de um pouso [Brusque, uma localidade do município de Orleans] a outro pouso, (casa do Sr. Matheus Ribeiro) [Casa de Pedra – Sede da Fazenda do Socorro], 9 horas; saímos às 7h e chegamos às 4.”

“Ao meio dia chegamos ao pé da serra, sestiamos e comemos um bom virado, que o Padre Redento fez arranjar na casa de Henrique Messer... Na subida só da serra gastamos hora e meia. O caminho é feio e horroso, em toda a minha excursão no Paraná e neste Estado não encontrei ainda um caminho tão horroso, e como diz o Francisco, não se pode explicar, é um caminho estreito, no fundo de uma garganta no meio de montanhas altíssimas, formado de pedras soltas, de todos os tamanhos e tão íngreme que o nível de 5 metros para diante na subida passa por cima do cavalo e do cavaleiro”.

“Em cima da serra já se descortina o aspecto, semelhante ao do Paraná, campos, pinheiros e frio.”

“Chegamos às 4 da tarde... às 8 horas da noite chrismei algumas pessoas da família do Sr. Matheus Ribeiro”.

E fala, então dos compadrios ali, adiquiridos, por ter sido padrinho de várias pessoas daquela família, que enumera.
Neste ponto, o diário passa para o livro nº 24 e assinala 20 de outubro, quinta-feira, quando diz:
“Ao meio dia, todos a cavalo, partimos para a casa do Sr. Manoel Rodrigues (Fazenda Bonsucesso) onde chegamos às 4 da tarde: o tempo esteve muito bom... em casa do Sr. Manoel Rodrigues nada fizemos... nos deram um jantar e um almoço no dia seguinte”.

Já na sexta-feira, dia 21 de outubro, as informações são mais circunstanciadas:
“Almoçamos e partimos as 9 horas da manhã, sendo acompanhado pelo Luciano Rodrigues, irmão, sobrinho Luis e mais alguns moços, chegando a São Joaquim às 2 horas da tarde”.

“Do Matheus Ribeiro ao Manoel Rodrigues, 4 léguas, e deste à Vila de São Joaquim, 5 léguas. O tempo continua muito bom, claro e fresco... Meia légua distante de São Joaquim fomos entrados por mais de 30 cavaleiros, que da vila vieram ao nosso encontro. Na porta da casa onde ficamos residindo nos esperavam a banda de música e os principais do lugar. Logo que apeamos, o Juiz de Direito Dr. Américo Cavalcanti Barros fez um discurso.”

“Às 6 horas da tarde fizemos a entrada solene, conforme o costume, sendo precedido pela Irmandade do Santíssimo, uma turma de anjos, outra de virgens, e acompanhado pela banda de música e todo o povo, que não é muito”.

“Aqui encontramos os Padres Oswaldo e Meinolpho, que já estavam trabalhando em preparação do povo.
“Tenho observado que por aqui há muita saúde e muito vigor: são fortes, grandes e corados.”

E, sabado dia 22, anota que crismou 130 pessoas. Já no domingo 23, merece alguns registros especiais:

“Do meio dia às duas paguei as seguintes visitas: Família Palma, João Pereira, Antonio Pereira, Matheus Ribeiro, Bernardino Esteves, etc.
Às 2 horas chrismei 271 pessoas.
O tempo tem estado esplêndido, de dia um sol radiante, de noite um luar magnífico e doce”.

E, na segunda-feira, dia 24, à tarde, fez visitas de despedida.
Finalizou a sua visita a São Joaquim, dia 25 de outubro de 1898, do que afirma:

“Celebrei às 8 horas e, em seguida, chrismei ainda 43 pessoas, perfazendo o número de  chrismas em São Joaquim, mais de 700. Almoçamos e, ao meio dia, acompanhados pela música e por todas as famílias, fomos a pé até o fim da rua, onde montamos a cavalo e fomos acompanhandos, até uma certa altura, por mais de 150 cavaleiros.”

“O Manoel Pereira, que já tinha enviado antes sua mulher, nos acompanhou até sua fazenda, onde descansamos um pouco e tomamos um café com muita mistura.”

“Chegamos, ao entrar do sol, em casa do Zeca Thomás, que está perto da margem do grande rio Lava Tudo”.

“Jantamos às 9 horas da noite, feijão e peixe frito, arroz e galinha”.

E, no dia 26, quarta-feira, as informações são deste tom:

“O Padre Redento, às 5:30 partiu para o Painel, a fim de tomar as providências para nossa chegada”... “Tomamos um bom leite e às 8:30 almoçamos:  feijão e peixe, arroz com carne picada e café .....às 10 horas partimos, tendo atravessado o Rio Lavatudo em canoa. Do outro lado do rio, montamos e partimos em direção ao Painel, pequena povoação, que não é ainda paróquia, nem freguesia.”... “fomos encontrados por 150 cavaleiros, tendo a frente o incansável Padre Redento, que havia tudo arranjado para nossa chegada.”

“Tendo partido às 10 horas, aqui chegamos às 2 da tarde”...
“Aqui (Painel) não tem música, nem irmandade”.    

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A título de curiosidade, acrescentamos abaixo a assinatura de Frei Rogério, que consta em um documento localizado no site Family Search.

Assinatura de Frei Rogério em documento no site Family Search, Registros de batismo, São Joaquim, Igreja Católica, 1714-1977.


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Fontes:

ALMEIDA, J. F. Atos dos Bons Samaritanos – Romanização e Medicalização na Vida de Religiosos Católicos. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/194453/001093312.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 14 de agosto de 2019.

ARQUEDIOCESE de São Paulo, História dos Bispos e Arcebispos. Dom José Camargo de Barros, 12º Bispo Diocesano (1903-1906). Disponível em: Bispo Dom José Camargo de Barros em: http://www.arquisp.org.br/historia/dos-bispos-e-arcebispos/bispos-diocesanos/dom-jose-de-camargo-barros.

CADERNOS de Blumenau - Livro do Frei Rogério 1913.

Contribuições: João Carlos Martins Sbruzzi e Henrique Brognoli Martins.

FAMILY SEARCH, Registros de batismo, São Joaquim, Igreja Católica, 1714-1977.

REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico de SC ano 1984.

Relatos de Nilo Sbruzzi e Manoel Cecilio Ribeiro Martins.


[i] FRANCISCANOS, Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. Frei Rogério Neuhaus. Disponível em: https://franciscanos.org.br/quemsomos/personagens/frei-rogerio-neuhaus/. Acesso em 04 set. 2019.