O tempo passa célere e
traz modernidades antes impensadas, importantes para a construção de nosso
futuro. No entanto, as tradições de cada momento histórico, base de nossa
identidade, perdem-se na poeira do tempo. Daí a necessidade do resgate de
certos hábitos e costumes de um certo momento, pois através dele, conhecemos quem
foram aqueles sujeitos, como viveram, quais eram seus valores e o que nos deixaram
de herança sociocultural. Com isso, vamos ganhando consciência de onde viemos e
de quem descendemos e, assim, pisamos firmes rumo ao nosso projeto de vida.
Apesar de não ter decorrido muito
tempo na história, pouco se sabe sobre os costumes, tradições e o cotidiano das
fazendas serranas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Como era o modo de
vida e a cozinha das casas de fazenda? Como eram construídas as casas e as
divisas? De que maneira era feito o controle e a criação de gado?
Nas últimas
matérias, buscamos resgatar um pouco desses aspectos que acabaram se perdendo no
tempo, de modo que, atualmente, as pessoas possuem pouco conhecimento da vida
nas fazendas primitivas.
Nesta postagem,
continuaremos esse resgate, apresentando trechos de alguns livros que tratam
dos costumes e das construções típicas das fazendas serranas. Iniciamos
versando sobre o uso das taipas de pedra, com trechos do livro A Casa do
Planalto Catarinense: Arquitetura rural e urbana nos campos de Lages, séculos
XVIII e XIX, de Fabiano Teixeira dos Santos[i].
“Vestígios materiais dos mais importantes que
se relacionam aos antigos caminhos de tropas do Planalto Serrano
Sul-rio-grandense e Catarinense são os muros erguidos manualmente em ‘alvenaria
de pedra de junta seca’, técnica conhecida na região como “taipa de pedra” ou
simplesmente “taipa”, guarnecendo as estradas – corredores – e facilitando a
condução das tropas de gado.
Popularmente denominados de “corredores de
taipas”, esses caminhos murados beiram a monumentalidade ao atingirem em alguns
trechos dezenas de quilômetros lineares ininterruptos. Sua construção se deu à
custa dos fazendeiros locais e tropeiros (CURTIS, 2008, p. 173), mediante o
emprego da mão de obra escravizada, e em aproveitamento da rocha basáltica que
aflora em abundância nos campos locais, na forma de pedras soltas (p.132).
[...]
Por meio do emprego destas estruturas, cuja
origem deve remontar às construções murárias primitivas de Portugal (CASELLA,
2003), também marcantes na paisagem do arquipélago dos Açores (ARQUITECTURA
POPULAR DOS AÇORES, 1999), de onde vieram muitos dos povoadores da região, se
configuravam as estradas, se dividiam as propriedades e se delimitavam as
invernadas de criação do gado. Tais estruturas eram também utilizadas na
confecção das mangueiras destinadas ao manejo do rebanho e para cercar os
cemitérios rurais, destinados ao sepultamento do fazendeiro e sua família (CASTRO,
2011).
Para os corredores, divisas de campo e mangueiras,
empregam-se para a construção da taipa uma seção de desenho trapezoidal, cuja
altura é proporcional às larguras da base, maior, de forma a garantir a
sustentação da estrutura, e do topo, menor. A medida da largura do topo
geralmente é metade ou cerca de um terço da medida da largura da base (p. 134).
Diz-se “empregam-se” porque a construção de
divisas e currais em taipa de pedra é uma técnica ainda em uso na região
serrana, apesar de há muitas décadas o uso do arame farpado ter sido
generalizado, pela facilidade de instalação e baixo custo.
É comum inclusive o reforço do fechamento
com muros de alvenaria mediante a instalação de moirões de madeira com arame
farpado correndo sobre as taipas, o que acaba tendo custo mais baixo que a
manutenção das pedras. Afinal, hoje não existem mais peões cativos que se
sujeitem às ordens do fazendeiro com esse propósito. Por tratar-se de tarefa
habilidosa, geralmente consistindo em conhecimento transmitido ao longo de
gerações de “taipeiros”, seu preço, cobrado por metro linear, atinge valores
elevados, o que torna o uso do arame mais vantajoso.
Tendo sido a construção de divisas e
corredores de taipa de pedra uma tarefa árdua e trabalhosa, cabendo quase que
exclusivamente aos escravos das fazendas, até hoje é comum ser o taipeiro negro
ou mulato, pois herdou dos antepassados cativos o rude talento de encaixar
pedras” (SANTOS, 2015, p. 135).
Figura 1 – Taipas de pedra
demarcando o Caminho das Tropas.
É interessante observar que, segundo Licurgo Costa
(1982), o uso do arame farpado para dividir fazendas começou em Lages, em uma
escala mínima, somente no fim do século XIX. Nessa época, a taipa era mais
barata do que o arame farpado. Como mencionado por Fabiano Teixeira dos Santos
(2015), as taipas eram utilizadas, também, para a construção de mangueiras de
pedra, que eram destinadas ao manejo do rebanho ou utilizadas para cercar os
cemitérios rurais.
Sebastião Fonseca de Oliveira apresenta como um
adendo ao seu livro Aurorescer das Sesmarias Serranas (1996), um trecho em que
descreve as mangueiras existentes em São José dos Ausentes, Rio Grande do Sul:
“Mangueiras
de Pedra
No
município de São José dos Ausentes, Campos de Cima da Serra, existem quatro
mangueirões antigos construídos de pedras, em data ainda não determinada (entre
1740 e 1808). Em agosto de 1995, o engenheiro agrônomo Hederaldo Paim Cesa
efetuou a medição destes mangueirões:
1 – O da Fazenda Santo Antonio dos Ausentes
tem a área de 9.307,75m², e a construção em forma de trapézio, com as seguintes
dimensões: base maior 1,60m e a base menor (cabeceira) 1,10m. e altura 1,60m.
2 – O da Fazenda São José do Silveira (Sede)
tem área de 6.182,00m². Dimensões: base maior 1,60m, base menor 1,30m e altura
1,70m.”
3 – O de Boa Vista localizado na mesma
Fazenda São José do Silveira tem área de 2.741,48m². Dimensões: base maior
0,80m, base menor 1,10m e altura 1,75m.
4 – O do Chapadão localizado na mesma
Fazenda São José do Silveira tem área de 2.741,48m². Dimensões: base maior
1,45m, base menor 1.00m e altura 1,45m. e ainda de perímetro 164,00m.
Figura 2 - Mangueira Redonda
de Taipas das Ruínas da Fazenda São João de Pelotas.
Figura 3 – Taipas cercando o Cemitério
da Fazenda do Socorro, São Joaquim (SC).
Também
no livro Aurorescer das Sesmarias Serranas, Oliveira (1996, p. 322) descreve as
construções de pedras - casas, mangueiras, potreiros e divisas:
“As benfeitorias construídas com material
existente na região, como casa e galpões, com suas paredes de pedra regulando
um metro de espessura, mais ou menos, eram cobertas de tabuinhas lascadas e as
divisórias internas com tábuas lascadas e falquejadas com mais ou menos 3
metros de comprimento por 60 cm de largura. As tabuinhas das coberturas eram
lascadas e cuteladas com 60 cm de comprimento e 20 cm de largura. Para
fazê-las, escolhia-se um pinheiro adequado (lascador) e maduro que era cortado
em mês sem a letra R, e na lua nova, cortando as toras e lascando da ponta para
o pé. As pedras das construções de mangueiras, potreiros e divisas eram
transportadas em uma “Zorra” que é uma forquilha de árvore com madeiras
atravessadas. A Zorra com as pedras era arrastada por bois carreiros ou mulas.
Os galpões
de esteios, com armações de madeira de lei, cobertos com tabuinhas, e paredes
de pedra ou tábuas lascadas, tinham o piso de torrão (saibro) bem batido”
(OLIVEIRA, 1996, p. 322).
Figura 4 - Bois carreiros
transportando pedras na Zorra. Fonte: OLIVEIRA, 1996, adendo.
Sobre
as casas e o modo de vida nas primitivas fazendas, Licurgo Costa (1982, pp. 1482-1483) escreveu um trecho intitulado “O
lento progresso na vida do fazendeiro”, do qual extraímos alguns excertos:
As
casas dos fazendeiros lageanos “eram paupérrimas e às vezes quase miseráveis.
Os fazendeiros mais fortes, já em meados do século passado [século XIX],
construíam-nas de pedras, com paredões externos como se fossem de fortaleza,
beirando um metro de largura. Na verdade, era assim porque em tempo de escravos
e de perigo de assaltos, as casas deviam oferecer grande segurança. Um pormenor
significativo na planta normal das casas, não apenas em Lages mas em todo o
Brasil, que dá bem a ideia das preocupações que deviam tomar os fazendeiros,
eram os quartos internos, para dormir, sem janelas para o exterior,
principalmente para as crianças e moças. Mas, não apenas as casas eram
modestíssimas, no sentido geral, como o seu mobiliário, também muito pobre
[...].
No
início, digamos da fundação até o fim do século XIX, [havia] apenas a mesa
grande da sala de jantar, com bancos e não com cadeiras, um armário altíssimo,
fundíssimo e fechado, que era o “guarda-comida”, um pote de cerâmica ou moringa
para a água fresca. Nos quartos, os catres da armação rústica, com estrado de
tiras de couro, e as canastras para a roupa, fazendo às vezes de armário. Nessas
canastras havia algum requinte no trabalho de forração externa, de couro
escolhido, para os quartos das moças entre os mais vistosos, de gado oveiro
vermelho, “pintado” ou todo vermelho, enquanto que para os quartos dos
“velhos”, eram selecionados couros mais discretos. Em geral, nesses quartos,
nem mesinha de cabeceira usavam, e os tapetes, quando os havia, eram de couro
de terneiros, mas muito mal curtidos, duros, meio enrugados. Na sala de visita,
além de duas mesinhas com jarras e um ou outro enfeite, havia, nas casas muito
ricas, o grupo de sofá de palhinha e as cadeiras. No fim do século passado
[XIX] muitas dessas mobílias de sala eram importadas da Europa, principalmente
da Áustria, onde existia um artesanato famoso de vime. Ainda atualmente [1980]
se encontram em Lages remanescente de tais mobílias, que poderiam servir para
um “museu do fazendeiro”, a ser criado.
As
cozinhas, sempre de chão, não tinham fogão, mas trempes de ferro ou ganchos
seguros nas travessas do teto, sempre sem forro, onde penduravam os panelões, a
imensa chaleira de ferro grosso. Mas que comida, que prato riquíssimos saíam
destas trempes! Era o feijão com toucinho e charque gordo, os guisados com
batatas paraguaias e manjerona e cebolinha; o arroz fumegante e cheiroso, feito
tudo na banha de porco derretida; era o lombinho frito de porco; o quibebe com
um tipo de abóbora amarela saborosíssimo; o tutu de feijão com torresmo; o
frango ensopado, enfim, uma cozinha simples, porém gostosíssima. E para os
rodeiros, no fundo do campo, que exigiam o dia inteiro, com almoço fora de
casa: o “revirado”, a paçoca de charque, com café tropeiro. No capítulo das sobremesas
não havia, como no norte do Brasil, grandes variedades, mas sempre se tinha o
bom arroz-doce com canela ou cravo-do-reino, a coalhada com rapadura, as
marmeladas feitas em casa, de frutas crioulas, guardadas em “caixetas”. Para
beber: o café de coador, o “camargo”, o chimarrão. Bebidas alcoólicas – vinho e
cerveja – só apareceram em escala maior muito tarde, por volta da Proclamação
da República. A cachaça, então, já era usada de longa data.
Aliás,
esta menção à cozinha do fazendeiro de passável situação econômica se refere,
obviamente, a uma época já bem avançada do século XIX. Do tipo de vida do
fazendeiro pioneiro, como em outros aspectos da História de Lages, o que se
sabe é por inferência. Sobretudo, baseada na suposição de que era idêntica à do
pioneiro do Continente do Rio Grande.
E
lá a base da alimentação era a carne. Quanto às moradias e o modo de viver dos
primitivos gaúchos, há um depoimento de Saint Hilaire, que visitou a província
por volta de 1820, realmente impressionante. Diz o famoso observador francês:
“Os mineiros
gastam o dinheiro que possuem com ostentação; os rio-grandenses têm muitas
vezes uma fortuna considerável, mas, quem vê suas residências e a forma por que
vivem, julga-os indigentes”.
A
vida cotidiana do fazendeiro lageano não condizia, pois, com suas posses. Era
modestíssima, como a do rio-grandense, e assim foi desde o começo até o início
do atual século [XX] quando, talvez, pela influência das colônias alemãs e
italianas, começa a melhorar. Na verdade, acostumados a um tipo de vida
espartana, não sentiam necessidade de grande conforto ou de melhor mesa. Só muito
lentamente emergem dessa situação. Mas o primeiro sintoma de progresso é a
preocupação com a educação dos filhos, que [...] começou a tomar vulto quando
os Padre Jesuítas e as Irmãs de Caridade abriram os colégios de São Leopoldo,
que granjearam altíssimo conceito em todo o sul do Brasil. Os filhos que
voltavam de lá, nas férias e depois de terminado o curso secundário, e que iam
para as “Academias” de Direito, Medicina ou Engenharia, foi que provocaram,
ajudados também por maiores facilitadores de comunicação, a modificar a vida
das velhas famílias da elite econômica local (COSTA, 1982, pp. 1482-1483).
Figura 5 - Casa de pedra da
Fazenda do Socorro, pertencente à Família Martins.
Figura 6 - Sede da Fazenda São
João, Lages. Foto: Ary Barbosa de Jesus Filho, Revista História Catarina, ano
XI, n. 78, 2016.
Figura 7 - Casa da Fazenda
Limoeiro, Lages. Foto: Fabiano Teixeira dos Santos, Revista História Catarina,
ano XI, n. 78, 2016.
Figura 8 - Casa da Fazenda
Guarda-Mór, que existiu na Coxilha Rica, Lages. Pertenceu a Laureano José
Ramos. Acervo Museu Thiago de Castro. Fonte: Revista História Catarina, ano XI,
n. 78, 2016.
Figura 9 - Vista Geral da Sede
da Fazenda do Socorro, em 1945.
Referências
COSTA, Licurgo. O continente das Lagens – sua história e influência no sertão da
terra firme. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, v. 4, 1982.
OLIVEIRA, Sebastião Fonseca. Aurorescer das Sesmarias Serranas: História
e Genealogia. Porto Alegre: Edições EST, 1996.
[i]
SANTOS, Fabiano Teixeira. A Casa do
Planalto Catarinense: Arquitetura rural e urbana nos campos de Lages,
séculos XVIII e XIX. Lages (SC): Super Nova, 2015. 220p.: il.
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