Dando continuidade a uma matéria
anterior, que retrava um pouco da vida nas primitivas fazendas serranas de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, escolhemos um texto de Enedino Batista
Ribeiro: Lida de campo em São João de Pelotas. Esse excerto foi publicado em “A Tribuna”, de São Joaquim, em 1931, e, posteriormente, no livro
Gavião-de-Penacho: Memórias de um Serrano (1999). Ele retrata a história de uma
parada de rodeio na Fazenda São João de Pelotas.
Lida de campo em São João de
Pelotas
Ao amigo Inácio
Pereira, publicado
em “A Tribuna”, de São
Joaquim,
a 28 de junho de 1931
Nota: Excerto escrito em
1931, aparece aqui completamente refundido, para fazer parte das MEMÓRIAS [Excerto
publicado em 1999 no livro “Gavião-de-Penacho – Memórias de um serrano”, de
Enedino Batista Ribeiro].
Voltando cinquenta
anos atrás o pensamento, mergulho meu espírito na quadra feliz e doce da minha
primeira infância, num tempo em que eu, guapo rapagote, nos rasgados das
coxilhas, ou nos costões íngremes das montanhas, esporeava o “pingo” na cabeça
do matambre, fazendo o corcel dar o máximo de velocidade, no encalço do touro
bravio que, tresmalhando do rebanho, não obedecia à volteada.
Recordo então, um por
um, todos os episódios, muitas vezes dramáticos, mas sempre belos e atraentes
da vida movimentada de uma grande fazenda de criação de gado.
Só para quem não
nasceu, ou nunca viveu numa fazenda, nem nunca sentiu a paz bucólica de um
sítio, quando o sol à tardinha vai se escondendo atrás dos montes e dourando a
paisagem com o mágico reflexo de nuvens de cor-de-rosa, só quem nunca viu uma
queimada de campo, quem nunca assistiu a uma derrubada de roça, só quem nunca
atirou um pealo, quem nunca viu como o caboclo destemido e garboso salta ao
lombo do potro xucro e sai ao léu pelas campinas, só quem nunca parou um rodeio
e nunca assistiu a uma briga de touros, desconhecerá que a vida do campo é a
melhor, a mais pura e bela, a mais divertida de todas!
Mas quem, como eu, na
“lida de campo” e numa queda de cavalo arrancou o primeiro dente que lhe
nasceu, ama tal vida como a nenhuma outra, e quando circunstâncias estranhas à
sua vontade dela o privaram, chora a sua falta e há de morrer como o “cavalo mostardeiro”,
com a cabeça voltada para a querência, ou seja, com o coração preso à
inapagável saudade da vida dos campos!
Façamos, então, leitor amigo, um retrospecto
de meio século no passado, e me acompanhe na descrição de um dos mais
apreciados acontecimentos que ocorriam anualmente na vida da Fazenda “São João
de Pelotas”[1],
ao tempo em que estava sob o mando de meu pai – João Batista Ribeiro de Souza.
Vamos “parar” um
rodeio no “Pinheiro Seco”, célebre rincão nos anais daquela Fazenda, tanto pelo
número de cabeças, como pela brabeza do gado.
Empregarei, quando
possível, a linguagem e os nomes regionalistas que então aprendi e que muito
perto me falam ao coração.
OUTUBRO
Tempo de marcação e
derrubada do gado para dar sal “guela” abaixo. Grande azáfama no velho solar
dos descendentes do Coronel João Ribeiro, em São João de Pelotas. Gente como
pinhão na pinha. Ao clarear do dia, todos os seus habitantes já estão de pé e
se movimentam: uns socam o sal; outros vão ao potreiro recolher a cavalhada;
aquele emenda um laço, este afia uma tesoura e, em todos os semblantes,
pinta-se uma louca alegria; um entusiasmo, um frêmito como que agita aquele
mundo de gente: é que hoje é dia de rodeio no “Pinheiro Seco”. Eta ferro! O
negócio vai ser duro!
Chegam os cavalos do
potreiro e o velho Batista, homem ainda de boa idade, ríspido, severo e que
entende da lida como gente grande, dá ordens aos peões; grita ao pessoal, e
então todos os campeiros, de buçal na mão, dirigem-se à mangueira onde está a
cavalhada, chegada há pouco do potreiro. Um laçador bom entra na mangueira e
vai laçando os cavalos, enquanto os outros ficam sobre a porteira esperando as
ordens do patrão.
O primeiro cavalo
laçado é um tordilho chato de nome Fumaça: é o encilha do chefe. Um “piazinho”
chega o buçalete e o conduz para o galpão. O segundo que cai no laço é o cavalo
baio amarelo, da tropilha da Taipa, chamado Beladona; diz o seu Batista: “chega, campadre Silvano”; o terceiro é
um cavalo branco, crina preta, muito bonito, de nome Patarata: “Chega, Inácio Pereira”. O Patarata, bom
como um veneno e velhaco como um raio, costumava velhaquear e derrubar o
Inácio, escapando com o lombilho; apesar disso, era o seu favorito. O quarto é
um cavalo sebruno, o Cedro: “Chega,
Afonso”; o quinto um cavalo preto, o Fumega: “Chega, Antônio Pedro”; o sexto cavalo branco, o Cambraia: “Chega, Amado”; o sétimo, um cavalo
rosilho, o Caçapava: “Chega, Máximo”;
o oitavo é um pingo branco, pintado de preto na tábua do pescoço, o Garça: “Chega, seu Tinoco”. Um “piazinho” de
sete a oito anos sai saracoteando e vai enfrenar[2] o
seu corcel. O Garça era um dos melhores matungos da tropilha, lindo animal,
faceiro, caminhava quebrando o freio com o queixo na maçã do peito.
E assim por diante,
que mais de trinta teria de enumerar, até que cada campeiro recebesse o seu
cavalo, todos, um por um, determinados pelo velho Batista, geralmente o mesmo
que recebera na véspera.
Em seguida, cada qual
encilha o seu pingo, sem apertar muito a chincha e sem pôr os pelegos.
Enquanto isso, na
cozinha e na casa grande, ia um atropelo do mulherio que prepara um almoço
ligeiro, ou um café “salgado”[3],
para a campeirada que se aproxima das mesas arrastando as esporas, alegres,
jocosos, palradores. A tudo dirige com energia e afabilidade, a dona da casa,
dona Cândida Ribeiro, ainda bem moça e sempre muito bonita.
É a hora de sair para o campo. Cada um aperta o seu
cavalo, ata o laço nos tentos e os mais moços e mais “fachudos” amarram a cola
do pingo, lá em cima, “onde a Maruca prende o grampo”; prende as rédeas na
cabeça do serigote, bem curto, e o matungo fica ali, enfrenado, nervoso,
pisando em flores, mordendo a maçã do peito.
Os campeiros de laço nos tentos, botas e esporas,
montam a cavalo, de “arreador” ou “rabo-de-tatu” na mão. Saem para fora do
parapeito, param, o patrão põe os olhos na turma para ver se não falta ninguém.
Coo! Coo! Coo! Chamam-se os cachorros, os
inseparáveis e eficientes auxiliares do camponês na lida com gado xucro,
atendendo logo, seis, oito, pulando, ladrando, correndo contentes, à frente dos
cavalos.
Sai a cavalgada. A poucas quadras da casa, o patrão
sustém o cavalo e dá as suas últimas ordens aos ginetes que se apinham ao seu
redor:
- O Amado, o
João Chica, o Joaquim Januário, o Chico Minducha e o Edmundo, vão ao fundo dos
“Dois Irmãos” a galopinho, dando água para os cavalos, trazendo tudo, gado e
cavalhada, não deixando nada.
- O Inácio
Pereira, o Afonso e o Zé Negrinho, vão ao fundo do “Maria” e do “Faxinal”, a
galopinho, dando água para os cavalos: tragam tudo, gado e cavalhada, e, às
vezes, brincalhão... “veado, graxaim, jaguatirica, tudo que acharem”. A
brincadeira dava como que ênfase às ordens transmitidas aos seus comandos, para
que esses pusessem toda a atenção e empenho na recruta da gadaria.
- O Antônio
Pedro, o Bento e o Guacho, vão ao “Corredor Ruim”, “Fundo do Rodeio” e “Picada
Grande”, trazendo tudo, gado e cavalhada, que não fique nada... poupando e
dando água para os cavalos.
- O Pedro
Grande, o Marcos, o Loiola, e o seu “Tinoco” entram aqui no “Fundo da Lagoa”,
no “Boi Brasino” e levam tudo que acharem para o rodeio.
- O Compadre
Januário e o Narciso seguem com os cargueiros de sal diretamente para o
“Pinheiro Seco”; descarregam e vão preparar o moquém para assarmos o churrasco
do mamote[4]
que vamos matar. Nessa palavra do chefe, “muito negro” passava a língua nos
beiços, antegozando o sabor do churrasco com farinha seca, pão e café gostoso.
- Terminando,
dizia o velho Batista: eu, o compadre
Silvano (e mais as visitas, se as havia) vamos aqui pelo “Morro do Lagoão”,
recrutando o que acharmos, esperando vocês no rodeio.
E desse modo, o experimentado fazendeiro distribuía
o pessoal, de jeito que cada canto daquele fazendão, recebesse a sua turma de
campeiros. Ele e os companheiros iam, mais ou menos diretamente, para o
“Pinheiro Seco”; ali subiam um morrinho alto, de onde se descortinava uma vasta
extensão de campos; e o velho Batista abria o peito chamando o gado: aon...
maton... on... on! Dali a pouco principiava de novo: aon... maton... on...
on!...
E que peito tinha o velho! Foi célebre! Sua voz
clara e possante ecoava como um clarim na quebrada dos montes e como que rolava
sem perder a intensidade no vargedo das campinas!
O gadaréu levantava a cabeça, ouvia o grito do
pastoreio e imediatamente seguia para o rodeio, aos pinotes berrando e
chifrando uns aos outros. Aí então, tinha-se diante dos olhos um espetáculo
magnífico: O rodeio do Pinheiro Seco ficava numa rechã[5]
formada pelo concurso de pequenas colinas e outeiros atapetados pela verde
pastagem que, já em outubro, muito viçosa, reverberava aos raios do sol; aqui e
ali, rasos e límpidos arroios prateavam, em riscos largos, o fundo da paisagem,
sumindo além na orla dos capões.
Já perto do meio-dia, a campereada está chegando ao
fim. De todos os lados afluem animais para o rodeio; aos pinchos[6],
berrando, num alarido louco. Os terneirinhos novos, galantes como uns brincos,
reúnem-se aos magotes para brincar, saracoteando, pulando e correndo uns atrás
dos outros.
Dali a pouco começam a chegar os campeiros com os
pontões de gado, os cavalos banhados em suor, resfolegando, arquejantes,
batento o vazio. Está parado o rodeio: quatrocentas, quinhentas reses... Que
bicharedo!
No gado do “Maria” vinha um touro preto caracu, da
virilha branca, animal criado, possante, lindo como uma fita, e uma das raras
reses mansas daquele rodeio de feras.
No gado dos “Dois Irmãos” vinha um touro colorado,
bicho criado, grande como um rancho e feroz como um tigre.
Os dois titãs se avistam: velhos inimigos, começam
logo a se provocar: cavando terra, defecando abundantemente, rabejando, urrando
de espaço a espaço, enterram as aspas no chão, levantando leivas de terra; dos
pescoços de rodo e dos cupins monstruosos levanta-se uma cerração de poeira
vermelha. Quando apenas uns oitenta centímetros os separam, levantam muito a
cabeça, ambos ao mesmo tempo, param, curvam o pescoço ligeiramente em sentido
oposto, armam-se garbosamente, cavam a terra... É momento psicológico de grande
emoção. Os cavaleiros, ofegantes pelo nervosismo que os domina, rodeiam os
“gladiadores”, com grande cuidado e imensa cautela. Há perigo iminente (e logo
veremos o fim trágico da luta), pois o touro que apanha sai seco, fulo de
raiva; o que encontra pela frente leva na ponta dos chifres.
Há apostas entre os espectadores, as opiniões e
palpites se dividem entre o preto e o colorado... subitamente, ouve-se um
choque violentíssimo – a luta teve início: os dois touros, ambos possantes,
ambos formidáveis, dão-se marradas tremendas, pontaços horripilantes, partem de
lado a lado arrancando pelos, riscando o couro; o sangue esguicha dos pescoços
nodosos e dos cupins hirsutos; outra vez uma cerração vermelha ergue-se
daqueles corpos em feroz contenda qual uma caldeira efervescente de zarcão. E,
por mais de dez minutos, prolonga-se a luta, sem que se possa calcular a qual
dos contendores caberá a vitória.
De repente, em dado momento, o touro preto consegue
pegar o colorado por baixo do pescoço hercúleo, suspende-o na cabeça e o
carrega dezenas de metros, rasgando o chão com as patas, estendo o colorado na
relva e calca-o furiosamente a cornadas! Este “berra como vaca”; é o sinal de
que se acobardou. Rápido como o relâmpago levanta-se o colorado, destro como um
lutador medieval; o preto crava-lhe as aspas, aceradas durindanas[7],
nos quartos musculosos e atira-o, escafedendo.
Na fuga, episódio perigosíssimo para os
espectadores, o touro colorado parte em vertiginosa carreira em direção aos
cavaleiros que formavam um semicírculo próximo ao local da briga; alcança um
deles, o Máximo, que montava o brioso Caçapava; levanta o cavalo e o cavaleiro
nas aspas, enterra uma delas até o meio no ventre do pobre corcel.
Cena dantesca aquela em que um touro bravíssimo levanta
sobre os chifres um cavalo, o cavaleiro fazendo prodígios para subtrair-se ao
iminente perigo.
Rápido, o touro consegue atirar o cavalo ao solo o
“tripedo” arrasto. Desde aquele momento o colorado passou, nas crônicas da
Fazenda, a denominar-se “o Criminoso”.
Refeito da forte emoção que o prendeu, o velho Batista
gritou energético: Capem essa fera!
Os cavaleiros se entreolharam; mas, habituados a
esses lances dramáticos e arriscados da vida de uma fazenda de criação de gado,
sacam os laços e avançam sobre o colorado que, a um canto do rodeio, cavava
terra envolto num turbilhão de pó. O touro, vendo-se acossado por aquele pugilo
de laçadores, resiste-lhes furioso, cavando terra, bramindo como um leão,
investindo, ora contra um, ora contra outro dos cavaleiros; mas dez homens são
também dez feras dotadas de inteligência – que é a força mais terrível do mundo
– dez laços quase ao mesmo tempo caem-lhe em cima, maneiam-no e derrubam-no,
mais rápido do que se poderia esperar. Laços nas pernas, laços nas mãos,
aqueles destemidos camponeses estaqueiam o vigoroso animal.
Então o tio Amado, moço, jovial e destro camponês,
joga-se de cima do Cambraia, saca de uma faca e, em golpes rápidos, extirpa os
testículos enormes do colorado que, assim, perde a “cisma”, deixando desde
aquele momento de ser touro, passando para o rol dos tourunos.
O tio Amado, sempre patusco, com os bidoques na
mão, mostrando aos companheiros diz: “vou comer eles assados para eu ficá
valente também!”. Mas, em seguida, desiste e joga ao “Veludo” e ao “Barão”,
dois ótimos cachorros gadeiros, um preto e outro baio, que devoram o avantajado
par de glândulas.
Ao levantar-se, “o criminoso” ficou dançando e se
virando para todos os lados, tal como os touros nas arenas das praças de
toureação; mas, os cavaleiros que, prudentemente, se haviam retirado do local,
não deixaram “inimigo” contra quem o colorado pudesse investir.
E assim, o colosso perdeu a “cisma” e não teve em
quem se vingar! O mesmo, muitas vezes, acontece na vida, para os homens...
Perdem o rompante e ficam falando sozinhos.
Enquanto isso se fazia, minha mãe, que se
encontrava com as filhas no Pinheiro Seco, mandou que alguns peões levassem o
mísero Caçapava para a sombra de um capãozinho, onde havia uma aguada; ali
chegando, com aquela sua presença de espírito admirável e ânimo sereno, mamãe
ordenou que se pusesse a vítima de pernas para cima, lavou as tripas do animal
com água de creolina e pôs-se pacientemente a recolhê-las, depois com tento de
couro cru, bem desinfetado na creolina, coseu a barriga do cavalo.
Todos pensavam, corroborando com a opinião de que
se devia sangrar o pobre animal pra não estar sofrendo, que o Caçapava não
escaparia daquela. Mas minha mãe não deixou que o matassem, dizendo que não
havia tripa furada e o cavalo podia se salvar.
Realmente, a vítima do colorado não morreu, sarou,
sem voltar todavia ao seu antigo vigor.
Tempos depois, quando se avistava o Caçapava, magro
e peludo, matando butuca pelas encostas dos matos, repetia-se a história mil
vezes contada, da trágica cena do Pinheiro Seco.
Quando mamãe terminou o tratamento dispensado ao
destitoso animal, era chegada a hora do churrasco. Então, todos a cavalo,
inclusive as senhoras, reunidos em um piquete de cavalaria ou guarda avançada,
atravessaram o rodeio coalhado de gado, em direção ao moquém que estava
organizado justamente do lado oposto ao que ficara deitado o Caçapava. O lugar
era pitoresco, um capãozinho com boa sombra e excelente água.
Três ou quatro menores ficaram rodeando o gado no
rodeio, a fim de evitar que alguma rês mais arisca se tresmalhasse, enquanto o
patrão e sua comitiva iam ao “encosto”[8]
para a muda de cavalos e churrasquear.
Aí, na enseada de um banhado atolador,
recostavam-se os cavalos, desencilhavam-se os que haviam servido para reunir o
gado no rodeio, com um manojo[9] de
capim desempastavam-se-lhes o lombo do suador, e um molequinho os conduzia aos
bebedouros d’água, já na direção da sede da Fazenda.
Então, no “encosto”, com os cavalos de reserva,
repetia-se a mesma cena da manhã na mangueira da casa: - Cai o laço no pescoço
do Soberbo, “Chega fulano”; Vem o Preá, “chega o beltrano”; - O Serrote, o
Sucena, a Beleza, e a Égua Moura, o Humaitá, o Corisco, o Gadeia, o Veado, O
Mouro Grande etc., são distribuídos pelos campeiros.
É a hora boa da churrascada. Há tempo já, o tio
Januário e seus comandados haviam carneado o mamote gordo. As postas graxudas
eram moqueadas em cima do brasido, cheirando apetitosamente.
Grupos de três a quatro campeiros recebiam seu assado
e dirigiam-se para uma mesa improvisada onde, com abundância recebiam farinha
de mandioca, pão e grandes bules de café.
Era uma verdadeira festa. O trago da cachaça corria
solto, de mão em mão, esquentando o sangue dos homens que discutiam, riam, gesticulavam,
comentando as aventuras da campeirada do dia; a briga dos touros, o acidente
com o Caçapava. Só o Máximo não ria, continuava macambúzio com o desastre
acontecido ao seu amigo e pingo de estimação.
Pronto. Todos montados voltam ao rodeio, fazendo broxas
(riscar a grama com as patas traseiras do cavalo quando esse em disparada é
sustado abruptamente pelo freio), roseteando os pingos para alertá-los de que a
hora é chegada do entrevero com o gado xucro: os excelentes cavalos de São João
de Pelotas conheciam do serviço, só faltava falarem.
Chegando ao rodeio, acaba-se a farra: o velho
Batista fecha a cara e dispõe os seus homens para “aparte” que é uma das fases
mais emocionantes da lida de campo: - trinta, quarenta cavalarianos formam uma
grande ala em meia-lua e, assim, conjuntamente, cortam um pontão de gado. É o
sinuelo[10],
que conduz a um determinado lugar na direção da Fazenda, para facilitar a sua
próxima condução, fica separado, a pouca distância do grosso do gado do rodeio,
pela ala de cavaleiros, espera-se uns minutos até o gado sossegar; depois dois
ou três homens acompanham o chefe, entram no sinuelo, e vão, cautelosamente,
fazendo voltar para o rodeio as reses que não devem ser conduzidas para a sede
da Fazenda.
Então, o “seu” Batista determina a ordem dos
trabalhos: Velhos e moços, peões e íntimos da família, naquela hora, todos são
iguais, recebem ordens e ninguém discute. “Faz a fala”:
Vamos apartar as vacas de cria, terneiros de
ano que vão à marca, os touros para castrar e as reses magras para se dar sal
goela abaixo: poupando os cavalos e sem perder tempo. Vamos nas horas de Deus!
Todos levantam o chapéu, em sinal de respeito ao
nome do Criador.
Três a quatro ginetes entram no sinuelo e vão
refugando as reses que não figuram em nenhuma das classes enunciada pelo chefe.
“Limpo” o sinuelo, oito, dez homens ficam cuidando
deste, enquanto o restante volta ao rodeio. Aí se dispõem aos pares, geralmente
velhos parceiros de aparte, e vão separando as reses jeitosamente, para não
atropelar a gadaria, até que cada um dos bichos sai fora do grosso do gado;
nesse momento, sem pestanejar, ao mesmo tempo, ambos os cavaleiros cerram
esporas nos matungos e, aos gritos, a estalos de arreador, a toda velocidade,
levam a rês, “na barbela do freio”, até o sinuelo, onde, à entrada deste,
sentando as mãos nas rédeas, fazem os pingos rasgar a grama naquele dependurado
do Pinheiro Seco.
Barbaridade! Nossa Senhora! Que coisa bonita de se
ver!
Quem nunca assistiu a um aparte de rodeio de gado
xucro, não pode avaliar a técnica, a prática requerida por parte dos cavaleiros
para que a rês chegue ao sinuelo, sem escapar nem para um nem para outro lado,
nem que parando a rês subitamente, sigam, os dois ginetes no ímpeto da
velocidade adquirida, emparelhados, sem rês nenhuma, como dois bobos... Quando
isso acontece é um “fiasco” para os companheiros que se prezam.
E por essa forma continua o aparte, horas a fio,
até que se tenha retirado do rodeio a última rês que se pretende conduzir para
casa.
Terminando o aparte, todos os cavaleiros se dispõem
ao redor do sinuelo que, no Pinheiro Seco, ficava formado por duzentas e mais
reses.
Ligeiro descanso para os cavalos que, banhados em
suor, arquejantes, resfolgam a plenos pulmões, narinas abertas, vermelhas como
uma nesga de baeta[11].
Depois, a um sinal do chefe, encaminha-se aquele bicharedo em direção da
Fazenda: é uma tarefa árdua. Ao restante do gado que ficou no rodeio, é
distribuída farta quantidade de sal, colocado em cochos, que o bicharedo lambe
gulosamente.
Naqueles bons dez quilômetros que separam o Rodeio
do Pinheiro Seco da sede da Fazenda de São João de Pelotas, em todo o seu
percurso, inumeráveis são os episódios que ocorrem de minuto a minuto. O gado é
bravio. Por todos os lados refugam reses a toda brida, sobre as quais açula-se
a cachorrada que, ganiçando, aos tombos, às dentadas, conseguem às mais das
vezes fazer voltar as reses ao sinuelo. Esse serviço é feito, mesmo, quase
exclusivamente pelos cães gadeiros, esses leais e valorosos serviçais do homem.
Os cavaleiros não podem despegar-se do grosso do gado, pois esse pode se
tresmalhar totalmente numa debandada geral, indo, água abaixo, um dia
inteirinho de serviço e porfiada luta com o gado xucro.
Finalmente, eis-nos chegando, com aquele pontão de
gado, à Fazenda, para encerrá-lo na mangueira: “Agora é que a porca torce o rabo se não for pitoca!”.
À vista da casa e do mulherio encarapitado em cima
das taipas e das tronqueiras para assistir ao grandioso e “sui generis” espetáculo, o gado começa a refugar, trotando, correndo
em redemoinho, batendo os chifres que repercutem em estalidos secos como o
pipocar de metralhadora em funcionamento.
É o momento decisivo: é preciso evitar a todo o
transe o “estouro da boiada, episódio grandioso e belo, mas perigosíssimo
porque a manada assim desembestada, leva de roldão e amassa sob as patas tudo o
que encontrar pela frente. A gauchada então cerra esporas nos matungos e
comprime a gadaria sobre a porteira do mangueirão, toda aberta.
Acuação cerrada da cainçalha, gritos, estalos de arreador,
berraçada das vacas de crias e dos bezerros – um alarido infernal!
Dez, vinte reses, tresmalham-se, mas o grosso do
gado é encerrado: dois ou três ginetes postam-se à porteira, e os demais, a
toda velocidade daqueles valentes corcéis, de laço na mão, matilhas e cães a ganiçar,
cortam as coxilhas, sobem e descem as encostas do morro no encalço das reses
que fugiram na estrada da mangueira. Raras escapam daqueles centauros veteranos
e encanecidos no lombo dos cavalos; algumas são conduzidas no laço, a
rabo-de-tatu, à custa de cachorros que se lhes ferram nos garrões, que outro
jeito não há.
Recolhida a última rês que se tresmalhara e fechada
e porteira, o velho Batista abre a fisionomia, levanta o chapéu bem alto e
exclama:
Graças a
Deus! Todos os presentes o acompanham no gesto e repetem a jaculatória.
Então a campeirada segue para casa, feliz, alegre,
sem sentir canseiras, mentindo, contando lorotas, rasgando faixas de
apocalípticas proezas praticadas naquele faustoso dia de rodeio no Pinheiro
Seco.
Desencilhados os cavalos, cada qual puxa o seu até
o riacho “Tourinho” onde, carinhosamente, lava o pingo dos pés a cabeça,
molhando o “bolso” (nas entrepernas a capadura, ou o úbere das fêmeas). Em
seguida, a cavalhada é repontada para o “Açude Grande”, no Capão da Lagoa, onde
pastoreados, ficam pastando e bebendo água, sendo à noitinha conduzidos para o
potreiro.
Três horas da tarde.
Merenda farta.
Hora do pealo.
Eta! Mundo velho!
Vai começar a derrubada geral do gado. É a fase
mais perigosa para os homens na lida de uma fazenda, quando se trata de um gado
brabo como era o do Pinheiro Seco. O homem deixa de ser centauro, é
simplesmente homem apeado do seu corcel que lhe oferecia uma proteção quase
completa contra a agressividade dos animais xucros. Têm que entrar na mangueira
a peito descoberto, no meio do gado feroz que entre as taipas do mangueirão se
reborqueia, correndo de canto a canto, batendo os cascos, retinindo os chifres.
Naquele lote, todo o gado é brabo, mas algumas
reses se sobressaem, e essas são as primeiras a pressentir os lidadores que de
laço na mão, afoitamente, se lançam na mangueira de chinchador à ilharga,
chapéu quebrado na testa, em mangas de camisa.
As mais ferozes carregam imediatamente sobre
peleadores: alguns vão à taipa, outros mais destros e destemidos quebram o
corpo e jogam o laço em reborqueado que, em rodilhas coleantes de serpente, vai
“cantar” as munhecas do bicho; deitam o laço na cintura e o animal tomba
fragorosamente, como se fosse ferido pelo raio.
- “Acarca,
fulano”! grita o peleador e o fulano avança sobre o animal deitado e
torce-lhe a cabeça; ato contínuo, outro laçador põe o seu laço nas pernas no
animal, que fica assim bem seguro e estaqueado; nesse momento um dos três
homens ali presentes, grita forte: “Sal e
água, marca, tesoura e faca”, conforme as operações por que vai passar o
animal.
Sal e água goela abaixo usa-se nas fazendas, na
saída do verão, não só como tônico e reconstituinte, mas como um depurativo
que, purgando a rês, facilita a queda dos pelos do inverno, abrevia a engorda,
e, como dizem em veterinária caseira, faz “abortar
alguma doença incubada”.
A marca, naturalmente, é para assinalar os animais,
facilitando a identificação no caso do extravio, ou, quando na fazenda há mais
de um dono, saber a quem pertence aquele animal.
A faca serve para fazer o sinal sangrento nas
orelhas, cujo feitio há de todos os tipos, e para castração, quando for o caso.
A tesoura presta-se para destopetear o gado, isto
é, aparar bem rente um pêlo alto que cresce na testa das reses durante o
inverno, que as enfraquece e as enfeia; pode servir também para cortar a crina
da cauda que é a matéria-prima sempre muito procurada nos mercados do mundo.
Para todos esses misteres há gente escolhida pelo
patrão, escolha que recai de preferência sobre os indivíduos desadestrados no
manejo do laço – que o pealo é uma arte difícil – ou então menores já com a
prática desse serviço.
Trabalhada a rês, vai-se-lhe dar liberdade; nesse
momento, parte do acalcador e seus parceiros o aviso:
“Vai o charque,
minha gente!”
Espalhados que andam por todos os recantos da
mangueira, fazendo idêntico trabalho, peleadores se previnem; é que vai
levantar-se uma rês muito braba, investideira.
Virgem poderosa! Os laços que a manietavam no chão
afrouxam-se ao mesmo tempo, o acalcador já “se escafedera”, prudentemente. O
animal se levanta enfurecido e investe furioso sobre o primeiro homem que se
lhe depara pela frente e só o deixa quando a cerca em que o perseguido trepou,
não lhe permite mais avançar.
E não raro, antes que o perseguido atinja a taipa,
a rês o alcança e o levanta nas pontas aceradas: fere a vítima de morte ou a
contunde gravemente – são os cavacos do ofício.
Há reses tão brabas e encanzinadas que, por mais
destemerosos que sejam os homens, não lhes permite mais voltarem à mangueira
para continuar a lida. Nesses casos é preciso recorrer a um expediente:
derrubar a rês novamente e amarra-lhe curta a mão direita ao pé esquerdo ou
vice-versa, o que impossibilita o animal de correr, embora possa se pôr em pé;
fica ali urrando, cavando terra, esbravejando na sua ira impotente, que para
tudo há remédio no mundo: para o boi brabo, a maneia cruzada, para homem louco,
a camisa-de-força.
Trabalhando o gado todo, contada classe por classe,
toma-se nota de tudo, para posterior registro no Livro Tombo da Fazenda,
abrem-se as porteiras e solta-se o bicharedo que “sai de marca quente”, e vai
direitinho, em marcha batida, para a querência.
Dezenove horas:
“Lá se vai o
sol entrando
Redondo como
um vintém
E a Terra triste
ficando
Co’a
despedida de alguém!...”
Jantar.
Que povão!...
Que lida braba também a do pessoal doméstico. A
esposa do velho Batista (velho só no nome) que tinho administrativo tinha, que
ordem e que limpeza reinavam naquele casarão! E que boa era minha mãe, alma
santa, sempre tão meiga tão afável para com todos, grandes e pequenos, pobres e
ricos. E, por isto, Deus, que já a levou deste mundo, te-la-á premiado com o
Céu!
Depois do jantar, a rapaziada ia brincar e fazer
estripulias ao luar: laçar os terneiros ou brincar de “roda-cotia” e de “gata
cega”.
A peonada, os agregados, os negros velhos, ficavam
em grupos palestrando, gracejando, contando mentiras, comentando os episódios
da campeirada ou da lida da mangueira.
A casa grande se iluminava, alegre. Nas salas e nas
varandas, os homens de mais idade e de mais responsabilidade se reuniam a meu
pai, e as mulheres, à minha mãe, palestrando alegremente e tomando chimarrão,
comendo guloseimas.
Dali a pouco, ouvia-se o som de uma gaita: era o
Inácio Pereira que a tocava; a rabeca gemia sob o arco manejado pelo Zé
Cláudio; o violão chorava: era o Serciliano que o dedilhava. Estava formado o
baile, que moços e moças não faltavam na residência do casal Batista Ribeiro,
dado o seu largo círculo de amizades e parentada. Por aqueles tempos de lida de
campo, a vizinhança toda estava em São João de Pelotas.
De repente, fazia-se silêncio, atenção geral: eram
dois cabras que se atracavam num desafio em versos, na lira pura, singela e
expressiva do sertanejo – o “quero mana”. Ou era então um cabriola que se
fincava a recitar versos de estirada décima.
E, para quebrar a monotonia da minha prosa – oca e
balofa – lá vão alguns versos tais quais os aprendi, nesse já remoto passado da
minha vida tão inocente, feliz e descuidosa. Por ignorância, e por prazer,
perfilho aqui todos os delitos, contra a Poesia, dos versos que deliciaram
outrora os meus ouvidos de criança:
Na costa do Rio Pelotas,
Naquele curral de dunas,
Deixei o negro deitado
No coice de uma reúna.
A sorte que negro teve
Ser preto como um carvão,
Se não eu não dava tempo
Do negro levantar as mãos!
Outro:
O índio quando me viu no laço
Disse: eu hoje não te deixo.
Olhei na cara do índio e
Contei dezoito fios no queixo;
Os olhos eram dois botões e
A barba como de peixe!...
Mais:
Lírio roxo, riscadinho,
Tem a cor de um penitente,
Quem anda cego de amor
Passa trabalho e não sente!
Ainda:
Vai-te carta venturosa,
Por esse mundo sem fim,
Se um dia me perder de vista,
Nunca te esqueças de mim!
Finalmente:
Menina dos olhos pretos,
Não me olhes chorando,
Eu faço que não te quero
Mas estou te namorando!...
E, nesse diapasão,
furavam as horas os poetas e queromanistas de São João de Pelotas! Bons tempos
aqueles! Era-se mais feliz, havia mais amizades sinceras, mais dinheiro, o
câmbio não oscila tanto e... Benza-me Deus! Cala-te língua! Ainda não de tinham
inventado a bomba atômica e o tubaronismo, o quebra-quebra, o comunismo etc.
Aí tem os amáveis
leitores de “A TRIBUNA”, a história de um rodeio no Pinheiro seco, dedicada ao
meu querido amigo Inácio Pereira, armado cavaleiro nas façanhas épicas de uma
lida de campo no famoso rodeio de gado xucro, e que “Gavião-de-Penacho” se lhes
propôs a contar.
Só há uma diferença: Gavião-de-Penacho – na pena – é como pintor
pobre, sem arte e remendão, que foi fazer o retrato de um homem e lhe saiu do
pincel a figura grotesca de um orangotango.
São Joaquim, julho de 1931.
(Ass.) Gavião-de-Penacho[12]
Figura 1 - Mangueira Redonda
de Taipas das Ruínas da Fazenda São João de Pelotas.
Figura 2 - Em uma parte da
Fazenda São João de Pelotas está localizada uma grande cruz de cedro, que
assinala o assassinato de João Baptista de Souza, "Inholo", em 1850. Essa parte da
fazenda passou a ser denominada pelos moradores da região como Santa Cruz, nome
pelo qual é conhecida até hoje.
[1] Fazenda São João de Pelotas: ao sul do município de São Joaquim, divisa com o Rio Grande do Sul. Essa grande fazenda pertencia no tempo dessa parada de rodeio a João Baptista Ribeiro de Souza e de Cândida dos Prazeres Baptista de Souza. Mais informação sobre a fazenda em: https://genealogiaserranasc.blogspot.com.br/2012/06/sao-joao-de-pelotas.html
[2] Enfrenar: do espanhol; substituir o bocal pelo freio em animais que amansam. Sinônimo: enfrear.
[3] Assim chamado porque era servido algum tipo de carne: guisado com farinha de mandioca, charque, etc.
[4] Mamote: Terneiro crescido que ainda mama.
[5] Rechã – Planura alta.
[6] Pinchos – aos pulos.
[7] Durindana: nome dado por Carlos Magno à sua espada.
[8] Encosto: parte do campo concernente à pastagem dos animais durante um certo tempo.
[9] Manojo: molho ou feixe que se pode abarcar com a mão; manolho.
[10] Sinuelo: palavra de origem do espanhol platino e que significa o gado manso habituado ao curral, e que se emprega nos trabalhos rurais como guia de animais xucros.
[11] Baeta: tecido felpudo de lã.
[12] Gavião-de-Penacho: pseudônimo utilizado pelo autor em seus artigos na “A Tribuna” de São Joaquim.
Referência
RIBEIRO, Enedino Batista. Gavião-de-Penacho
– Memórias de um serrano. Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.
Co-edição da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina. 544p. Coleção
Catariniana, n. 1. Florianópolis: Instituto Histórico e Geográfico de Santa
Catarina, 1999.
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