quarta-feira, 31 de julho de 2013

A nevada de 1912

    Lançado o livro “O Voo das Curucacas” que conta a formação do território da Região Serrana de Santa Catarina no século XVII e também como se domiciliaram nessa região algumas das primeiras famílias das estirpes RIBEIRO e SOUZA – estabelecidas na COSTA DA SERRA, em duas fazendas de criação de gado: a Fazenda de Pelotas e a Fazenda do Socorro – seguimos as postagens do Blog com um texto de Enedino Batista Ribeiro, que fora citado no jornal Diário Catarinense de domingo, 28 de julho, devido a neve que ocorreu de maneira inusitada em Santa Catarina.
    Vejamos como Enedino relata os fatos ocorridos nesta que foi a maior nevasca de que se tem notícia no século XX em Santa Catarina. Nevou nessa região de São Joaquim, durante três dias e três noites, ininterruptamente. Segundo Enedino, a neve começou a cair às 10 horas do dia 1 de setembro, seguindo até dia 3 de setembro do mesmo mês. Acompanhemos o que tem a narrar o autor, então com 13 anos de idade, durante os acontecimentos desastrosos.


XXIV
A Nevada de 1912

Já nos últimos dias de agosto, meu pai recebeu, com grande atraso, telegrama de Lages, chamando-o, pois sua mãe estava gravemente enferma.
No dia 1º de setembro, papai seguiu para aquela cidade, acompanhado de um peão de confiança.
Lembro-me, como se fora hoje, da partida de meu pai. No momento exato em que ia penetrar na restinga da casa, voltou-se no cavalo e nos abanou com o chapéu, pois todos nós da família tínhamos ficados encostados às taipas de parapeito, vendo sua partida.
Seriam nove horas da manhã de um dia triste e nublado, com grandes paredões pretos no horizonte, para as bandas do rio Grande do Sul. Não sei por que pairava no ar desolação que oprimia a gente, como que pressagiando funestos acontecimentos.
A temperatura era muito baixa, e cada vez escurecia mais. Recolhemo-nos para dentro da casa, e mamãe nos convidou para rezarmos o Padre Nosso, todos juntos, de joelhos. Assim foi feito.
Foi nessa ocasião que fiquei sabendo que minha mãe, aquela mulher forte e inteligente, também tinha sua boa dose de superstição.
Mamãe, com todos os filhos ao redor dela, disse o seguinte:
Meus olhos andam repuxando, e quando isso acontece, sempre eu tenho de chorar muito; depois, os malditos dos bicos-xanxões não param de chorar perto de casa; isto é bicho de mau agouro; se eu pudesse, mandava matá-los a todos.
Seria mesmo só superstição?
Para aqueles dias era... Todavia, para um futuro que não estava longe, o que minha mãe estava dizendo, era pressentimento exato de dias angustiosos que estavam por chegar.
Às dez horas do dia 1º de setembro de 1912, começou a cair a neve, abundantemente. O céu era púmbleo. Nevou três dias e três noites sem parar!
Foi a maior nevada que caiu na região de São Joaquim e em todo o Planalto Catarinense, desde que aquela zona foi habitada. Essa opinião foi então, e é até hoje, tida como verdadeira.
Foi uma coisa espantosa! Um dilúvio de neve! Fenômeno grandioso que envolvia a terra!
Os caibros da casa vergados, estalavam sob a grossa camada de gelo acumulado; nos matos, as árvores se desgalhavam de alto a baixo, com estalidos secos, perfeitamente audíveis no interior da habitação, onde os familiares, à roda de mamãe, comentavam o fenômeno nunca antes presenciado.
Nós, os menores, de certo modo, e com razão, intimidados, perguntávamos se papai iria morrer naquela barbaridade? Nossa mãe então nos tranquilizava dizendo que “nada ia acontecer”.
Ao anoitecer, pontões e pontões de gado, mugindo, atropelando-se, chegaram à sés, rodeando a casa, e ali passando a noite toda, sob os açoites do vento que rodopiava e sibilava inclemente, com temperatura abaixo de três graus negativos.
No dia seguinte, 2 de setembro, o gelo era tanto em cima da casa que, coberta de tabuinhas, não tinha como não afundar, deixando-nos sem teto.
Naquela emergência, mamãe determinou que uns três ou quatro homens decididos, furassem, no meio, tábuas de um metro e um metro e meio de comprimento e encabassem em longas varas (rodos), para puxar a neve de cima da casa. Essa ordem fui cumprida com rapidez, afastando-se o perigo de afundar a coberta, penetrando o gelo no interior da residência.
Enquanto isso se fazia, mamãe mandou os filhos mais velhos, Afonso e Edmundo, e peões da Fazenda, que encilhassem os cavalos que se encontravam nas estrebarias, e fossem atropelar o gado que permanecia encorujado ao redor da casa, sem comer. O exercício impediria o encarangamento, dada a baixa temperatura. Isto também se fez com presteza, mas de pouco adiantava, porque algumas horas depois, o gado voltava para casa doido de fome, uma vez que a pastagem havia desaparecido totalmente sob a grossa camada de neve, que crescia de hora para hora.
A situação era, aliás, delicada, mas a fazendeira, na ausência do marido, e com os filhos moços, não se acovardavam: o gado continuou a ser repontado para obriga-lo ao exercício, e a neve a ser retirada de cima da casa, com aqueles objetos que mamãe mandara fazer e a que dava o nome de “rodo”.
Como é fácil perceber, surgiu outra dificuldade desagradável: montanhas de neve se formaram em roda da casa, junto às paredes, fazendo com que diminuísse consideravelmente a temperatura no interior da residência, o que poderia ocasionar resfriados e mesmo pneumonia, tanto mais que havia crianças de tenra idade entre os moradores, como a minha mana mais moça, a Ceci, que contava apenas com dois anos de idade.
Fez-se então um grande fogo na cozinha, que se comunicava com a casa grande por passadiço fechado, e escancaram-se as portas de comunicação, sem se dar importância a um pouco de fumaça que invadia a residência da família.
E esperou-se ainda aquela noite, para ver o tempo como amanheceria, a fim de ser tomada uma providência contra o gelo que se apinhava ao redor da habitação.
O dia 3 de outubro amanheceu mais claro, embora a neve continuasse a cair com intensidade. Por volta do meio dia, a nevada foi cessando. O mundo era um oceano alvinitente (de alvura imaculada), nenhuma pedra, nenhuma árvore descoberta... neve, neve e neve por toda a parte; céu e gelo era só o que se via!
Pouco a pouco foram se esgarçando as nuvens e o sol, lindo como nunca, encheu de luz dourada a superfície prateada da terra! Impossível fitar a imensidade; cegavam a gente as cintilações argênteas que subiam das várzeas, que desciam das montanhas! Era um espetáculo soberbo, belo, magnificamente belo!
Não se podia andar lá fora, o gelo alcançava os joelhos. A água para o preparo dos alimentos e para tomar, era obtida da própria neve, derretida ao fogo. O frio era uma coisa que sobressaía. É sabido que no degelo a temperatura é mais baixa do que no período em que, propriamente, está caindo neve, para o que há uma explicação científica: no inverno o sol é fraco, pouco intenso, e, costumeiramente, cessada a queda de neve, ventos fortes sopram sobre a terra, levantando nuvens de um tênue poeira gelada.
Então o termômetro acusa acentuadas baixas na temperatura.
Morreu bastante gado, ovelhas, porcos, animais cavalares nos matos, acalcados pelas madeiras e galhos que despencavam em cima das reses.
Um outra feição triste e calamitosa das grandes nevadas é o estrago que ocasionam nas florestas. É um estrondar contínuo das árvores que caem e que se racham de alto a baixo... aquilo dá um medo na gente, que nem é bom falar!
Lembro-me que na tarde daquele dia 3, sol a pino, bem vestidos e bem calçados, várias pessoas subimos ao morro da Santa Cruz, e de lá de seu cocuruto, fazíamos rolar pequenas bolas de neve que iam crescendo rapidamente, à medida que corriam morro abaixo até sua base, uns cento e cinquenta metros de percurso, onde chegavam transformadas em enormes globos de neve. Para nós, no cimo do morro, e para os que apreciavam a brincadeira das janelas da casa, era um entretenimento incomparável, principalmente se o “bólido”, na descida vertiginosa, batia em alguma rocha, esborrachando-se em milhões de pedacinhos: era então uma chuva de neve, como se aprecia nos foguetes de lágrimas dos fogos de artifício.
Papai regressou de Lages lá perto do dia 10 ou 12, muito triste com a morte da mãe, ocorrida justamente a primeiro do mês, início da nevada.
Depois de abraços de pêsames apresentados a nosso pai, ele passou a contar as ocorrências da viagem: no dia de sua partida, depois de ter passado o Lavatudo e vencido seu profundo vale, na chapada, a camada de gelo já era tão considerável que os animais mal podiam andar. Meia tarde ainda, teve que pousar, porque as montarias estavam exaustas. No dia seguinte, sobre a noite, é que pôde chegar à cidade de Lages. Não alcançou os funerais de vovó, cujo enterro realizou-se abaixo de neve, as pessoas se atolando no gelo para carregar o esquife. Esperou a missa de sétimo dia e veio embora, devendo voltar a Lages dentro de dois meses, para o inventário dos bens da finada. 
Então passamos nós a lhe relatar o que foi a cruel nevada e as medidas de emergência que tiveram de ser tomadas, para evitar danos na casa, doenças em pessoas da família e domésticos e maior mortandade de gado. 
Papai, mais uma vez, elogiou a fibra da dona da casa, que tomou as medidas adequadas à fúria das intempéries. 
Eis aí, numa descrição sucinta, o que foi a grande nevada de 1912, a maior que se registrou até hoje nos anais das invernias do Planalto Catarinense.


Texto retirado de: 
RIBEIRO, Enedino Batista. A nevada de 1912. In: RIBEIRO, Enedino Batista. Gavião-de-penacho: memórias de um serrano. Florianópolis: Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, 1999, pp. 248-253.

Matéria do jornal Diário Catarinense que cita o livro Gavião-de-Penacho:



FRANTZ, Sâmia; DANTAS, Carolina. Reportagem especial: Uma aula de metereologia. Diário Catarinense, Florianópolis, 28 jul. 2013.

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