sábado, 25 de setembro de 2010

Estudo Histórico-Genealógico relacionado ao doador do imóvel INVERNADA DOS NEGROS

                                                                                                                Por Ismênia Ribeiro Schneider

Em 1877, o estancieiro Matheos José de Souza e Oliveira doou a libertos e escravos, através de testamento, a terça parte das terras de sua fazenda São João, perfazendo um total de cerca de 8 mil hectares, situada a 22 km do município de Campos Novos, imóvel que passou a ser chamado de Invernada dos Negros. 
O testamento, além de informar sobre o nome dos onze herdeiros, determinava a condição de inalienabilidade e indivisibilidade das terras herdadas. Com essa cláusula, o doador preocupava-se em garantir que as terras jamais pudessem ser comercializadas, mas somente transmitidas de geração em geração, permanecendo na posse dos herdeiros. Tal atitude, inédita na relação senhor/escravo, determinou uma nova forma de organização social para seus herdeiros, envolvendo o contexto quilombola[i].
No entanto, apesar da preocupação do testador, a cláusula restritiva não conseguiu impedir que a área sofresse inúmeras intervenções, com diversas tentativas de apropriação indébita por parte de advogados, empresas de papel e celulose, entre outros, interessados na riqueza das terras e matas doadas. O processo de titulação das terras da Invernada está neste momento (2009) em fase adiantada de processo jurídico, dizendo respeito ao direito à terra de seus legítimos proprietários[ii].
 Os aspectos antropológicos, sociológicos e jurídicos decorrentes dos problemas surgidos ao longo dos anos com a Invernada dos Negros, que intrigam até hoje os estudiosos, estão sendo tratados por especialistas e setores competentes, como a Universidade Federal de Santa Catarina, o Ministério Público, entre outros.
Como pesquisadora de famílias e fazendas da Região Serrana de Santa Catarina desde 1999, principalmente as que dizem respeito a meus antepassados – Souza, Ribeiro e Palma – oriundas todas da Comarca de Lages, e mais especificamente ainda da Costa da Serra (entorno dos atuais territórios de Bom Jardim, São Joaquim, Urubici, Painel, Urupema e Coxilha Rica/Lages), com pulverização de famílias descendentes em regiões vizinhas, como Curitibanos, Campos Novos e adjacências, sinto-me no compromisso histórico de contribuir com os dados genealógicos do Major Matheos José de Souza e Oliveira (1823/1878), filho de Joaquim Antunes de Oliveira e Maria Magdalena de Souza (e após a morte desta, com sua segunda esposa, Maria Rodrigues Borges), para situá-lo no contexto histórico e familiar em que viveu.
Em 2002 tive ocasião de estudar o inventário sem testamento de 1879[iii], no qual era inventariado o cidadão Joaquim Antunes de Oliveira, falecido em 08/04/1879 em sua Fazenda “Chapada Bonita”, localizada na região do Bom Sucesso, em São Joaquim da Costa da Serra. Possuía, porém, outra fazenda na região de Campos Novos, situada na confluência dos rios Inferno Grande e São João e denominada “São João”, na qual estabeleceu parte dos filhos do primeiro matrimônio.
Joaquim Antunes de Oliveira contraiu primeiras núpcias com Maria de Souza, em 29/04/1821[iv],  filha de  Matheos José de Souza (1737-1820), importante cidadão de Lages, cujo nome foi dado ao neto, o nosso biografado. O avô foi casado com Clara Maria de Athayde (1774-1810), casal que se tornou   tronco da Família Souza  em Santa Catarina, domiciliado na região do hoje município de Bom Jardim, onde era proprietário da Fazenda do Socorro.  Matheos/Clara Maria tiveram sete filhos, por sua vez ancestrais de importantes famílias serranas. Maria de Souza era a sexta filha, tendo passado para a crônica familiar com o nome de “Maria Magdalena de Souza” (dado colhido por Enedino Batista Ribeiro em inventário judicial[v]). No entanto, nos documentos manuscritos existentes sobre a Família Souza no Museu Thiago de Castro de Lages e no registro de batismo[vi] do seu filho Matheos  é referida como “Maria Josefa de Souza e Athayde”.
O inventário de Joaquim Antunes de Oliveira relaciona os seguintes filhos nesse primeiro casamento:
1 – Manoel Antunes de Oliveira,     casado com (c.c.) Maria Bernarda do Espírito Santo (falecida em 1882). Domiciliados no município de Lages.   09 filhos.
 2 – Joaquim Antunes de Souza.      Domiciliado no município de Lages.
 3 – João Antunes de Souza, c.c. Fermina Maria da Silva (falecida em 1868), já viúva de João Vicente dos Santos, pais de 01 filho. Do casamento com João houve 07 filhos. Domiciliados em Campos Novos, termo de Curitibanos.
 4 – Francisco Antunes de Souza. Domiciliado em Campos Novos, termo de Curitibanos.
 5 – José Antunes de Souza.  Domiciliado em Campos Novos, termo de Curitibanos .
            Da página 28  à  33 do inventário de Joaquim aparecem documentos que atestam que o casal  teve um sexto filho, Matheos José de Souza e Oliveira, falecido antes do pai e, por isso, não relacionado na lista de herdeiros. Nesses documentos constam, as seguintes informações, em grafia original:
“(...) Acontece que existe na freguesia de S. João dos Campos Novos, termo da villa de Curitibanos, três partes de campos e mathos, que o mesmo finado obteve por herança de seo filho ofinado Tenente Matheos Jose de Souza e Oliveira, cujas partes de campos e mathos em inventário procedido a um anno mais ou menos por morte deste finado, tiverão o valor de quinze contos como prova o documento junto, com cujo valor se conformam os suplicantes, evitando assim a expedição de uma precatoria, para aquelle juízo, e maiores dispendios com prejuízo dos interessados[vii]”.
Por esses dados, fica comprovado que o major Matheos José de Souza e Oliveira, casado com Pureza Emília da Silva, sem filhos, repartiu sua herança entre o pai, Joaquim Antunes de Oliveira, três partes, e uma parte deixada, ainda em vida, em testamento de 1877, a onze de seus libertos e escravos, imóvel que passou à história como INVERNADA DOS NEGROS, como vimos acima.
Não tivemos ainda acesso ao testamento, nem ao inventário do próprio Matheos José de Souza e Oliveira, para esclarecer por que não foi sua herdeira a sua mulher, Pureza Emília da Silva. Uma das possibilidades é que tenha falecido antes dele. Sabe-se pelo inventário do pai, Joaquim, que este foi o primeiro proprietário da Fazenda São João em Campo Novos, para onde enviara quatro dos seis filhos homens do primeiro casamento. Pelos documentos disponíveis, sabe-se também que Matheos tornou-se rico estancieiro na região. O que aconteceu com os outros três herdeiros? Matheos comprou dos irmãos a fazenda toda? Questões que só serão respondidas com o aprofundamento do estudo histórico-genealógico e com acesso aos documentos fundamentais.
Um outro elemento genealógico coloca sob o foco da historiografia serrana a família de Matheos José de Souza e Oliveira, que é o fato de ele ser primo-irmão da figura lendária de Ana de Jesus Ribeiro, conhecida como Anita Garibaldi. A mãe de Anita, Maria Antonia de Jesus, nascida em Laguna, era irmã de Joaquim Antunes de Oliveira, o pai de Matheos. Maria Antônia e Joaquim eram filhos de Salvador Antunes e de sua segunda mulher, Quitéria Maria de Souza[viii], estes portanto, avós tanto de Matheos quanto de Anita Garibaldi.
Salvador Antunes, que era paulista de nascimento, no início de sua vida em Santa Catarina foi capataz da Fazenda Tijucas, na Costa da Serra (Bom Jardim). Chamo  a atenção dos estudiosos de Anita para os seguintes fatos, que fazem parte da história oral das famílias Ribeiro e Souza e que pelos presentes estudos possuem fortes indícios de veracidade. Essas duas famílias também possuíam fazendas e moravam  nessa mesma região: próxima à Fazenda Tijucas, ficava  a Fazenda do Socorro, comprada em 1775 pelo patriarca da Família Souza, o avô materno de Matheos, já citado. Uma das filhas mais velhas do casal Matheos/Clara Maria, Maria Benta de Souza (1790-1857) ,  casou-se com João da Silva Ribeiro (1787-1868), ocasião em que recebeu como dote de casamento uma parte da Fazenda do Socorro, onde o casal estabeleceu domicílio. Com o tempo, João Ribeiro comprou mais terras no Socorro (fazenda original de cerca de 110 milhões m²), passando as famílias Souza e Ribeiro a conviver estreitamente e a aprofundar os laços de consanguinidade através do casamento de descendentes, e que iam  herdando terras nessa fazenda e em outras da vizinhança que lhes pertenciam (“Pelotas”, “Campo de Fora”, “Santa Bárbara”, “Três Barras”). Pois bem. Conta a crônica familiar que o pai de  Anita Garibaldi, Bento Ribeiro da Silva, no começo da vida de casado, foi, por sua vez,  capataz  de uma das fazendas citadas, todas na Costa da Serra e próximas umas das outras. Segundo essa história, “Aninha do Bentão” e seus irmãos brincavam com as crianças das outras fazendas. Quem a contava era Ezírio Bento Rodrigues Nunes (1822-1916), neto de Maria Benta/João Ribeiro, conforme relato familiar e dados de Licurgo Costa[ix]. Essa, porém, é apenas mais  uma das histórias que povoam o imaginário das famílias numerosas e unidas que viviam nas primitivas fazendas serranas. É difícil comprovar quais são verdadeiras.
Mas o que marcou a figura de Matheos José de Souza e Oliveira e que avulta e orgulha a crônica da Família Souza é, sem dúvida, o nobre e inusitado gesto de deixar a onze de seus escravos e descendentes vasta área de terras, que lhes garantiu, dessa forma, para sempre, não só a sobrevivência, mas principalmente a liberdade e a dignidade.



[i] - Informações obtidas em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/12/435033.shtml. Acessado em 15 de janeiro de 2009.
[ii] - Ver diversos artigos publicados sobre o assunto, como os obtidos  nos seguintes endereços eletrônicos: http://www.nuer.ufsc.br/notíciasquilombos.invernada.html. Acessado em 15/01/2009
[iii] - Museu do Judiciário de SC, em Florianópolis, Inventário de Joaquim Antunes de Oliveira, de 1879. Processo nº338, Cx. 29.
[iv] - Paróquia de Lages; Certidão de casamento (L2, Fls 76v).
[v] - Juízo de Direito da Comarca de Lages. Inventário judicial julgado por sentença  de 1810, na certidão parcial que se vê a fls.506 dos Autos de Divisão da Fazenda do Socorro.
[vi] - Paróquia de Lages; Certidão de Batismo de 06/07/1823.
[vii] - Museu do Judiciário de SC, em Florianópolis, Inventário de Joaquim Antunes de Oliveira, de 1879. Processo nº338, Cx. 29, p. 28.
[viii] - Bogaciovas.  Revista ABRASP, n° 6, São Paulo, 1999, p. 61; Oliveira, Sebastião. Aurorescer das Sesmarias Serranas. Porto Alegre: Ed. Est, 1996; Costa, Licurgo. O Continente das Lagens. Vol 1. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1982, p. 219.
[ix] - Costa, Licurgo. O Continente das Lagens. Vol 1. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1982, p. 245.

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