Certamente, por ser eu, entre nove irmãos, a mais nova dos mais velhos e a mais velha dos mais novos e, por essa razão, em muitas ocasiões, elo de ligação entre todos, fui escolhida para, em seu nome, agradecer a presença dos amigos nesta homenagem a nosso Pai, promovida por ninguém mais do que a entidade cultural mais antiga e, sem dúvida, uma das mais prestigiosas de nosso Estado – o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Permite a decisão desta entidade que se resgate a memória de um de seus pares que, se por mais não fora, legou à sua descendência e à juventude de seu Estado valioso testemunho de honra, lealdade, bondade, senso de justiça, trabalho e amor à família e à pátria.
Em 1985, Enedino Batista Ribeiro, indicado por seu amigo, conhecedor de sua obra, o ilustre historiador, embaixador Licurgo Costa, foi recebido nesta casa de saber em emocionante sessão solene, presidida pelo eminente professor Vitor Peluso Júnior, de saudosa memória. Desde então, até sua morte, acompanhou, com muito carinho, os trabalhos do Instituto, apesar de pouco freqüentar as sessões ordinárias, devido ao seu precário estado de saúde.
Acontecendo, neste ano, o centenário do seu nascimento, decidiu o IHGSC comemorar festivamente a data, ao correr de todo o período, através de várias atividades culturais, dentre as quais se destacam esta Sessão Solene e a publicação, em data ainda não confirmada, de um livro de memórias, escrito pelo homenageado ao longo da vida.
A imagem do homem público, do professor, do escritor e historiador, do pecuarista serrano nos foi resgatada pelo eminente orador da casa, também serrano, desembargador Carlos Alberto Silveira Lenzi, com a maestria que a sua qualidade de homem de letras já nos permitia vislumbrar. Ficamos-lhe devedores desses elucidativos momentos de recordação, durante os quais nosso querido pai de novo esteve entre nós.
A mim me cabe o prazer de lhes mostrar, em rápidas pinceladas, um pouco do pai e do amigo que foi Enedino Ribeiro.
Cada família possui uma história, diria, “secreta,” porque não conhecida das demais pessoas fora do círculo familiar, que se concretiza segundo um código de conduta, embasado nos valores morais e culturais que o casal carrega para o matrimônio. Mas o que é um casal, afinal? É a simbiose de duas personalidades, de dois corações que na troca de experiências vivenciais comuns, passam a formar uma identidade única, a tal ponto homogênea que não se consegue mais distinguir o que pertencia à bagagem afetivo-cultural de cada um dos cônjuges.
Tivemos o privilégio de ser filhos de um casal cuja identidade era perfeita, o que permitiu que nos criássemos sem traumas, porque sabíamos que, sob nossos pés, a rocha firma daquele amor era a salvaguarda da nossa integridade.
O nosso lar viveu sempre, como sua característica principal, a realidade de abrigar uma vida joaquinense, radicada e perfeitamente aculturada nesta capital. Tivemos uma vida um pouco diferente das demais famílias florianopolitanas, porque bipolarizada: de março a começo de dezembro permanecíamos na velha casa de estilo colonial, da Praça Getúlio Vargas, onde a tônica era o estudo dos jovens, justificando a meta maior de nossos pais, que era propiciar estudo universitário a todos os filhos. Havia no casarão dois centros nervosos: de um lado, a cozinha e a sala de jantar da “tia” Lydia (apelido carinhoso, “tio” e “tia”, com que os joaquinenses se tratam), onde acontecia a vida em grupo. Uma mesa para quinze ou mais pessoas congregava os ânimos. A um canto, um grande quadro de giz surpreendia pelo inusitado. Muitas vezes a comida esfriava para que algum de nós apresentasse algum problema, um desafio, que passava a ser discutido, no quadro, por todos. Essa parte da casa era o destino natural dos que iam chegando, pois ali ficava o reduto daquela que era o elo efetivo e afetivo de todos, nossa serena e amorosa mãe. Em lugar mais central encontrava-se o “gabinete do tio Nida”, o paciente e exímio mestre: foi ali, principalmente, que aprendemos a amar a História, a Geografia, a Literatura, a Música, a Astronomia, todos os saberes, já que todos era objeto de seu interesse. Ali aconteciam as conversas pessoais, as “consultas”, o intercâmbio de idéias. Rodeado de livros, sentado a uma grande escrivaninha, passava nosso pai suas horas de ócio, a ler e escrever. Estava, porém, sempre disponível para conversar, sempre desejoso de orientar e ajudar, aliás, não só em seu gabinete, mas em qualquer local e a qualquer hora.
No final da década de 1940 e em toda a de 50, época de nossa juventude, poucas famílias possuíam, em Florianópolis, telefone, carro ou televisão. O lazer da mocidade consistia na leitura, no cinema e nos bailes, nas “soirrées-dançantes”, ora no clube “Doze de Agosto”, ora no “Lira Tênis Clube”. Às moças não era permitido freqüentar, desacompanhadas, esses ambientes. Durante muitos anos, nos finais de semana, a tarefa de nossos pais era nos acompanhar. Hoje, imagino que tal obrigação lhes fosse pesada, mas na época nunca os sentimos contrariados em nos proporcionar tal distração. Sob seus cuidados nos acompanhavam outras meninas, vizinhas, primas ou colegas. Somente quando os filhos homens foram considerados “responsáveis”, é que assumiram a missão de acompanhar as irmãs. A partir daí, creio que num discreto sistema de controle, criou-se o hábito de irmos ao quarto do casal “contar as novidades”, tão logo voltássemos para casa.
Uma estratégia utilizada para estreitar os laços de amizade entre os irmãos era, nas brigas, não dar razão a ninguém. Quando achava necessário, castigava igualmente os contendores, que eram obrigados, depois, a se beijarem e se abraçarem. Não havia raiva ou mágoa que resistisse a esse método...
Procuravam nossos pais não mostrar preferência por nenhum filho. Todos nos considerávamos igualmente amados e importantes. Por isso, não sentíamos ciúmes uns dos outros. Nem mesmo quando alguém recebia alguma regalia. Se fora concedida, era porque se tornara necessária.
Uma das características mais marcantes da personalidade de nosso homenageado era o amor à verdade. Sempre nos dizia: “Quem diz a verdade, não merece castigo”. Cumpria à risca o ditado, mas passava mal aquele que não o seguisse, menos pelo corretivo do que por ver o desgosto de que era tomado nosso pai.
Com os dois aprendemos o dom da hospitalidade: nossa casa estava permanentemente aberta aos amigos e parentes. Havia sempre um lugar à mesa, ou uma cama para a visita inesperada. Criados em duas famílias numerosas, sentiam-se à vontade e contentes rodeados por muitas pessoas.
Outro traço que distinguia nosso Pai era o grande amor que nutria por sua terra natal. Sentia uma profunda nostalgia das paragens de sua infância. Hoje, sentimos não o termos acompanhado mais vezes a São João de Pelotas, a fazenda onde nasceu, na divisa com o Rio Grande do Sul, na costa do Rio Pelotas.
O Segundo Pólo de nossa vida transcorria de dezembro a março, na pequena fazenda que possuíamos a 25 Km de São Joaquim. Era o nosso paraíso. Ali se fortalecia o sentimento de camaradagem, pois o grupo se tornava mais coeso e alegre, para melhor usufruir as delícias que nos eram proporcionadas: passeios a pé e a cavalo, participação nas lides campeiras, nos rodeios, etc. De manhã cedo, éramos despertados para tomar, na cama, o camargo, típica bebida serrana, feita de café forte e açúcar, sobre o qual era tirado diretamente o leite. Ficava um café denso e espumoso, considerado pelo Pai com um “fortificante natural”.
Durante essa temporada, uma das nossa maiores alegrias eram os passeios à cidade, principalmente para o baile de gala do Clube “Astréa”, no começo do ano. Cada um ficava na casa de um tio diferente, mas na hora da entrada no baile, porque se tornara um acontecimento na cidade, entrávamos juntos, os onze. A festa era animada pelo famoso conjunto “Jazz Pedacinho do Céu” que, à nossa chegada, parava o que estivesse tocando, para nos receber com o tango “Sonho Azul”, emblema da família.
À noite, no sítio, nos reuníamos na “cozinha de chão”, onde era aceso um fogo, ao redor do qual nos sentávamos a contar “causos” de cobras, de assombração, de histórias das famílias Palma e Ribeiro, comendo milho verde ou pinhão, assados no borralho. Nas noites muito escuras e secas, quando o céu parecia um veludo negro bordado de dourado, saíamos a estudar os astros. O professor estava sempre a mão...
O gado de leite conhecia o Pai e o rodeava quando ia distribuir o sal. Houve um caso que ficou famoso nas redondezas, o do “Amigo”, um grande touro de puro sangue holandês, levado ainda bezerro para a fazenda. Afeiçoou-se ao dono de tal modo que, mesmo adulto, quando o via, aproximava-se para um carinho, baixando a enorme cabeça de chifres pontiagudos. Depois o seguia docilmente por toda a parte, à moda dos cães. Certa vez, eu lhe pedi para também passar a mão por entre as aspas, o que deixou que fizesse “somente estando com ele e uma única vez”. Só fui me assustar uns dias depois, quando “Amigo”, num acesso de ciúme, levantou nas aspas um grande boi-carreiro e o jogou do outro lado de uma cerca de tábuas de uns dois metros de altura.
Possuía Enedino grande conhecimento, empírico e científico sobre as cobras, pois as estudava continuamente. Exerciam sobre ele um enorme fascínio. Em São João de Pelotas elas abundavam: jararacas, cotiaras, urutus e, na barranca pedregosa do grande rio, cascavéis. Havia também uma cobra muito feia, brava e grande, realmente assustadora, mas que não era venenosa, e que tinha o mérito de limpar os campos de ratos e cobras peçonhentas. Chamava-se muçurana. Tio Nida proibia a sua matança em suas terras, explicando aos caboclos as razões de sua ordem. De nada adiantava, pois os nativos a temiam, não a distinguindo das venenosas. Assisti à lição cabal que meu pai deu para os convencer. Reuniu todos e mostrou uma caixa grande de papelão onde dormia uma delas. Explicou-lhes as características de umas e de outras, que providências tomar em caso de picada por uma das venenosas, e porque não deviam matar as muçuranas. Em seguida, com um pau, incitou a cobra, irritando-a, após o que a levantou pelo rabo, explicando que ia se deixar morder na mão, para que vissem como nada de mal lhe acontecia. Assim fez. Em seguida, bem perto de todos, largou a cobra, que fugiu para o mato. Avisou que dali para frente, pagaria uma certa quantia por cada muçurana que lhe fosse entregue viva...
Prezados Amigos!
Espero que os esparsos fatos narrados tenham tido o poder de fazê-los conhecer um pouco do caráter e da personalidade daquele pai, tão decisivo na formação dos nove filhos e das gerações que o estão sucedendo.
Nesta noite hibernal, em que aqui viemos com espírito relaxado e receptivo para uma volta ao passado, nesta homenagem prestada a Enedino Ribeiro, desejamos, mais uma vez, agradecer ao IHGSC os momentos vividos, de emoção e saudade, e aos amigos o prazer de os terem compartilhado conosco.
Para a família, neste momento, se tornam mais que nunca verdadeiros os versos de nosso velho poeta Casimiro de Abreu:
“Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”
Obrigada!
Gostaria de saber como fço pra acahr dados sobre minha familia se puder me ejudar agradeco.
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